A questão da raça no censo populacional dos EUA
A raça nos Estados Unidos continua sendo um conceito problemático, uma classificação arbitrária de distinções não científicas e um estereótipo incoerente, além de ser difícil de definir de forma objetiva e sem ambiguidades
Por Joseph Chamie
Portland, EUA – Com o início dos preparativos para o censo populacional dos Estados Unidos de 2030 e o impulso do Escritório do Censo em direção a uma maior participação pública, é hora de avaliar seriamente a contínua inclusão da questão racial no censo populacional do país.
A questão racial do censo não é apenas confusa – uma classificação arbitrária de distinções não científicas e conceitualmente problemática, mas a coleta contínua de dados raciais no censo decenal é divisora, alienante e inconsistente com o lema dos Estados Unidos “e pluribus unum”, ou seja, “de muitos, um”.
A coleta de dados sobre raça da população é um assunto controverso. Alguns países, agências e organizações, incluindo o Conselho de Direitos Humanos da ONU, defendem que a coleta e compilação de dados raciais são necessárias para garantir a igualdade, abordar o racismo sistêmico e orientar decisões apropriadas de políticas públicas. Eles acreditam que os governos devem coletar e disponibilizar ao público dados demográficos completos desagregados por raça. Outros, no entanto, argumentam que a coleta de dados raciais é alienante, promove estereótipos adversos e contribui para a criação de diferenças sociais arbitrárias.
Eles também temem que autoridades governamentais e outros possam usar a coleta e compilação de dados raciais da população para beneficiar ou sancionar certos grupos. Além disso, eles apontam que, apesar da discriminação religiosa nos Estados Unidos, o censo decenal não inclui uma pergunta sobre filiação religiosa.
A grande maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – incluindo França, Alemanha, Itália e Japão – não coleta dados sobre a identidade racial de seus habitantes. Apenas cerca de um quinto dos 38 países da OCDE, incluindo Canadá, Reino Unido e Estados Unidos, coletam dados raciais sobre suas respectivas populações (Gráfico 1).
Gráfico 1: Distribuição da coleta de dados sobre raça entre os países da OCDE. Fonte: OCDE
Em alguns países, como a França, a coleta de dados sobre raça é considerada divisora e, portanto, os governos evitam categorizar seus cidadãos por raça. Além disso, em muitos países europeus e em outros lugares, a coleta de dados raciais continua sendo um assunto muito delicado, devido à história recente de autoridades que usaram dados demográficos para hostilizar, oprimir, perseguir e até exterminar certos grupos de pessoas.
Nos Estados Unidos, além da enumeração básica de sua população, exigida pela Constituição do país para determinar a representação no Congresso, as perguntas incluídas em seu censo decenal são essencialmente uma questão política. Os temas que serão incluídos ou excluídos neste censo muitas vezes respondem à política e ao lobby político.
As perguntas sobre idade e local de residência geralmente levantam poucas objeções. Por outro lado, a coleta de outras informações – como filiação religiosa, cidadania, orientação sexual, identidade de gênero, origem étnica, filiação política e status migratório – geralmente é controversa e algumas não são incluídas no censo.
Desde o primeiro censo dos Estados Unidos em 1790, quando foram coletados alguns dados sobre raça e categorias que diferenciavam brancos livres, outras pessoas livres e escravos, o governo mudou suas definições de categorias raciais mais de 10 vezes.
Além disso, em muitos censos anteriores, indivíduos que eram brancos e de outra raça, independentemente do pequeno percentual, eram contados como não brancos, em grande parte com base na chamada regra “one-drop”.
Atualmente, o Escritório do Censo dos Estados Unidos coleta dados raciais de acordo com os Padrões para Manutenção, Coleta e Apresentação de Dados Federais sobre Raça e Origem Étnica de 1997, dirigidos pelo Escritório de Administração e Orçamento dos Estados Unidos (OMB, em inglês).
Baseadas principalmente no continente ou país de origem, as cinco categorias mínimas da OMB para dados raciais são: índio americano ou nativo do Alasca, asiático, negro ou afro-americano, nativo do Havaí ou de outras ilhas do Pacífico e branco.
A partir do censo de 1960, a raça não foi mais determinada pelas decisões dos recenseadores do censo, mas dependia da interpretação do indivíduo para selecionar a categoria racial apropriada. Além disso, o autorrelato de mais de uma raça começou com o censo de 2000.
O Escritório do Censo define raça como a autoidentificação de uma pessoa com um ou mais grupos sociais, e enfatiza repetidamente que as categorias raciais no questionário do censo geralmente refletem uma definição social de raça reconhecida no país e não uma tentativa de definir raça biológica, antropológica ou geneticamente.
Qualquer pessoa que tenha preenchido um questionário recente do censo decenal dos Estados Unidos se depara com a questão da raça. Muitas pessoas não entendem como responder melhor a essa pergunta, porque ela não corresponde à forma como entendem a raça.
Com a escolha de uma ou mais “categorias raciais” no recente censo de 2020, uma pessoa poderia selecionar Branco, Negro ou Afro-Americano, Indígena Americano ou Nativo do Alasca, quase uma dúzia de países asiáticos ou das ilhas do Pacífico, bem como a onipresente “Outra raça”, com origens nacionais ou étnicas especificadas nas caixas de redação (Gráfico 2).
Gráfico 2: Pergunta sobre raça no censo dos Estados Unidos 2020. Fonte: Escritório do Censo dos EUA
A questão racial do censo dos Estados Unidos tem sido respondida com insatisfação e frustração por alguns grupos e indivíduos. Além das opções limitadas, as categorias raciais do censo deixam de refletir cada vez mais como as pessoas se veem, estão desalinhadas com a realidade de suas experiências pessoais e muitas vezes confundem a identidade étnica das pessoas, especialmente a hispânica.
No censo de 2020, cerca de 50 milhões de residentes dos Estados Unidos, ou aproximadamente 15% da população do país, marcaram a caixa de “Outra raça”. A proporção da população dos Estados Unidos que escolheu a categoria “Outra raça” em 2020 é o dobro da porcentagem de uma década antes e o triplo da porcentagem de duas décadas antes (Gráfico 3).
Gráfico 3: Número e porcentagem da população que seleciona a categoria “Outra raça” na população dos Estados Unidos – Censos de 2000, 2010 e 2020 (em milhões). Fonte: Escritório do Censo dos EUA
Entre as reformas propostas que estão sendo consideradas para a questão racial do censo de 2030 está a inclusão de uma nova caixa para “Oriente Médio ou Norte da África (Mena)”. De acordo com os padrões atuais estabelecidos pelo Escritório de Administração e Orçamento, os americanos com raízes no Oriente Médio ou Norte da África são considerados brancos.
Defensores dos árabes-estadunidenses e de outros grupos Mena têm feito campanha há muito tempo por sua própria caixa na questão racial. Com base em suas experiências cotidianas, muitas pessoas de ascendência Mena não se identificam como brancas.
Além de adicionar uma nova caixa na pergunta do censo sobre raça, a reforma proposta à questão racial alteraria a definição do governo de “branco”, uma vez que não incluiria mais pessoas com origens no Mena.
Como resultado, a mudança poderia diminuir a proporção de pessoas que se identificam como brancas entre a população dos Estados Unidos, o que se tornou uma questão destacada na política estadunidense, especialmente entre a direita política.
As famílias em todo os Estados Unidos estão se tornando mais racialmente diversas. Parte desse aumento é resultado da crescente diversidade da população dos Estados Unidos devido à imigração e ao aumento dos casamentos mistos entre grupos raciais e étnicos no país.
Desde 2010, o número de pessoas nos Estados Unidos que se identificam como multirraciais mudou substancialmente. De nove milhões de pessoas em 2010, o número aumentou para 33,8 milhões de pessoas em 2020 e agora representa cerca de 10% da população.
A raça nos Estados Unidos continua sendo um conceito problemático, uma classificação arbitrária de distinções não científicas e um estereótipo incoerente, além de ser difícil de definir de forma objetiva e sem ambiguidades. Além disso, desde 1960, o Escritório do Censo dos Estados Unidos tem se baseado na autoidentificação do indivíduo para determinar a raça de uma pessoa.
Em resumo, a questão racial do censo populacional não é necessária para determinar a representação no Congresso legislativo e, o que é mais importante, a questão racial está contribuindo para o fortalecimento de divisões artificiais em todo o país que são desnecessárias, confusas e hostis aos princípios inerentes da nação.
Consequentemente, deve-se considerar seriamente a avaliação da inclusão da questão racial no censo populacional de 2030.
Joseph Chamie é demógrafo consultor independente. Foi diretor da Divisão de População das Nações Unidas e autor de inúmeras publicações sobre temas populacionais, incluindo seu livro mais recente: “Nascimentos, mortes, migrações e outros assuntos importantes sobre população”.
*Imagem em destaque: Transeuntes em uma rua de Nova York (Shutterstock)
**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução de Marcos Diniz
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