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Reviravolta nos EUA: Kamala entra na disputa eleitoral

Reviravolta nos EUA: Kamala entra na disputa eleitoral

Em uma semana, a pré-candidata democrata à presidência dos Estados Unidos, Kamala Harris, trouxe Gaza para o debate eleitoral, defendeu o aborto e o casamento gay e ainda lançou o seu primeiro programa sob o slogan “Nós escolhemos a liberdade”. Entenda a reviravolta.

POR TATIANA CARLOTTI

A guerra eleitoral entre democratas e republicanos pela Casa Branca passou por uma reviravolta nesta semana com a chegada de Kamala Harris, a vice-presidente dos Estados Unidos, na disputa presidencial.

Kamala foi alçada à principal disputa eleitoral do país com aval não apenas do presidente Joe Biden, que a indicou no último domingo (21), mas sob a pressão do alto escalão democrata, incluindo a congressista Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara dos Representantes entre 2019 e 2023, o casal Bill e Hillary Clinton e, obviamente, Barack e Michelle Obama.

Nesta sexta-feira (26), o casal Obama divulgou um vídeo de Harris recebendo o telefonema com seu apoio. “Nós ligamos para dizer que Michelle e eu não poderíamos estar mais orgulhosos em apoiar você e vamos fazer tudo o que nós pudermos para que você passe por essa eleição, e chegue ao Salão Oval (gabinete do presidente dos EUA)”, afirmou o ex-presidente.

A pressão sobre Biden pela desistência de sua reeleição ganhou escala após a participação do democrata no debate com o bilionário e candidato republicano Donald Trump, ocorrido em 27 de junho. A partir de então, “Biden sofreu uma enorme pressão para renunciar à sua candidatura”, observa o cientista político Liszt Vieira.

Uma pressão de vários setores. Em 4 de julho, o britânico The Economist, porta-voz do ideário neoliberal, estampava em sua capa um andador pedindo a saída de Biden da disputa. No dia 9, The New York Times implorava em seu editorial: “ele precisa ouvir, pura e claramente, que não é mais um porta-voz eficaz de suas próprias prioridades”.

Capa em 4 de julho do Economist e reprodução do vídeo da ligação do casal Obama para Kamala nesta sexta-feira, 26 de julho.

O anúncio de Biden chegou, finalmente, em 21 de julho, doze dias após o atentado contra Trump na Pensilvânia, recuperando com agilidade os holofotes pelos democrata. Em seu eX-Twitter, o presidente dos Estados Unidos postou:

Meus companheiros democratas, decidi não aceitar a nomeação e concentrar todas as minhas energias em meus deveres como presidente pelo restante do meu mandato. Minha primeira decisão como indicada pelo partido em 2020 foi escolher Kamala Harris como minha vice-presidente. E foi a melhor decisão que tomei. Hoje, quero oferecer meu total apoio e endosso para que Kamala seja a indicada do nosso partido este ano. Democratas — é hora de nos unirmos e derrotar Trump. Vamos fazer isso.

Além do futuro do país, analisa Vieira, “também pesou na decisão dos democratas o futuro do próprio Partido, que poderá ter reduzida a sua representação na Câmara e no Senado, em caso de um governo Trump”.

81 milhões de dólares em 24 horas

24 horas após a declaração de Biden, as doações de campanha dispararam nos cofres democratas, quebrando o recorde de arrecadação para um candidato à presidência naquele país. Foram depositados US$ 81 milhões de dólares (cerca de R$ 451 milhões). Mais de 888 mil doações foram com valores inferiores a US$ 200 (ou R$ 1,1 mil).

Com esse montante em apoio e esbanjando energia em suas aparições públicas, Kamala chega à disputa em empate técnico com Trump, segundo as duas pesquisas até agora divulgadas.

A primeira da Reuters/Ipsos, publicada na terça-feira, após o anúncio da sua candidatura, apontava 44% das intenções de voto para Kamala e 42% para Trump. A segunda da NYT/ Siena College, divulgada na quinta-feira, reiterou o empate técnico com 48% das intenções de voto para ele e 46% para ela.

A pré-candidata democrata também obteve apoio de 2.579 delegados do partido, conforme levantamento da Associated Press. O número é mais do que o suficiente, entre os 1.976 votos necessários, para sua indicação durante a Convenção Nacional Democrata (CND), entre 19 e 22 de agosto. Seu nome, porém, deverá ser oficializado antes da convenção. O presidente nacional do partido, Jaime Harrison, afirmou na segunda-feira (22), que o novo candidato será escolhido até 7 de agosto, através de uma votação online.

Embora ainda não oficialmente candidata, na prática, Kamala Harris já assumiu o posto. Foi o que mostrou em suas aparições públicas nesta semana ao trazer Gaza para o debate eleitoral, defender abertamente o direito ao aborto e o casamento gay, prometer a ampliação do acesso à assistência médica e condenar o porte de armas semiautomáticas.

O cessar-fogo em Gaza

“Para todos os que estão esperando por esse cessar-fogo e para todos que pedem a paz: eu vejo e ouço vocês. Vamos concluir esse acordo para termos um cessar-fogo e encerrar essa guerra. Vamos trazer os reféns para casa. E vamos levar alívio para a população palestina”, afirmou na quinta-feira (25), em coletiva de imprensa, após se reunir com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.

O esperado aceno pelo cessar-fogo veio, mas com sua absoluta concordância “com o direito de Israel de se defender” do “grupo terrorista do Hamas”, e a reafirmação do apoio estadunidense ao “estado de Israel”, sem qualquer menção ao estado da Palestina. De todo modo, o massacre em Gaza entrou no debate eleitoral:

“O que aconteceu em Gaza nos últimos nove meses foi devastador. As imagens de crianças mortas e de pessoas desesperadas e famintas, fugindo em busca de segurança, às vezes deslocadas pela segunda, terceira ou quarta vez. Não podemos desviar o olhar diante dessas tragédias. Não podemos nos permitir ficar insensíveis ao sofrimento, e não ficarei calada”.

Kamala posa ao lado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, após pressionar pelo cessar-fogo em Gaza. (Foto: Casa Branca).

Com essa fala, Kamala busca o apoio de parcela significativa do eleitorado, em particular a juventude, que vinha rejeitando o atual presidente por conta do financiamento estadunidense ao genocídio palestino. No primeiro semestre deste ano, uma onda de protestos pró-Palestina foi levantada pelos universitários daquele país, que enfrentaram a repressão policial nos estados mais conservadores.

O descontentamento também se fez ouvir nas próprias fileiras do governo Biden. Em 4 de julho, doze funcionários de alto escalão, de vários departamentos do governo, publicaram um documento intitulado Service in Dissent, em que afirmam:

“A cobertura diplomática dos EUA e o fluxo contínuo de armas para Israel garantiram a nossa inegável cumplicidade nos assassinatos e na fome forçada da população palestina sitiada em Gaza. Isto não só é moralmente repreensível e uma clara violação do direito humanitário internacional e do direito norte-americano, como também colocou um alvo nas costas dos Estados Unidos”.

Freedom

Além de se posicionar sobre um dos principais conflitos financiados pelos Estados Unidos – a Guerra da Ucrânia ainda não entrou em discussão –, Kamala também apresentou, durante suas aparições públicas ao longo da semana, suas propostas para a política doméstica.

“Nós escolhemos a liberdade. A liberdade não apenas de sobreviver, mas de progredir. A liberdade de estar a salvo da violência armada. A liberdade de tomar decisões sobre o seu próprio corpo. Escolhemos um futuro em que nenhuma criança viva na pobreza. Onde todos nós podemos pagar por assistência médica. Onde ninguém está acima da lei”.

É o que diz, em linhas gerais, o seu primeiro vídeo de campanha, divulgado nesta quinta-feira, indicando a aposta democrata na defesa das liberdades individuais que vêm sendo ameaçadas pelo ideário da extrema-direita, como o direito ao aborto e o acesso à assistência médica. Nunca é demais lembrar que, ao contrário do Brasil, os Estados Unidos não oferece atentimento médico gratuito à sua população, como nós temos aqui com o SUS.

Fotos: reprodução vídeo.

Os ataques a Trump também foram recorrentes em sua fala. No vídeo de poucos minutos, as manchetes da condenação do bilionário, ocorrida em 31 de maio na Corte de Manhatan, alternam-se com os versos de Freedom, a canção doada à campanha democrata pela rainha do pop, a cantora Beyoncé.

O programa dialoga diretamente com as mulheres estadunidenses que se sentem ameaçadas pela agenda da extrema-direita. Em particular, as mulheres conservadoras que, apesar de gostarem de Trump, não pretendem abdicar de seus direitos reprodutivos, o que, em última instância, significa o direito de escolher os rumos da própria vida. Segundo os analistas, essas mulheres brancas, moradoras dos subúrbios em grandes cidades, com tendências republicanas, mas que prezam seus direitos reprodutivos, compõem um segmento decisivo para a vitória democrata em estados-chaves.

A questão vem sendo central nos Estados Unidos desde a revogação da lei Roe vs. Wade, em  junho de 2022, a partir de uma decisão da Suprema Corte de transferir para as cortes estaduais o veredicto sobre a criminalização ou não do procedimento. Kamala é contra a decisão e promete pressionar pela restauração da lei de 1973.

Enquanto isso, nas redes…

Focando nas ameaças de Trump à democracia e, sobretudo, às liberdades individuais, sua campanha irá bater na tecla “civilizatória” que vem caracterizando as campanhas contra a extrema-direita em todos os cantos do mundo.

“Trump e seus aliados extremistas querem levar nossa nação de volta a políticas econômicas fracassadas, à luta contra os sindicatos, à volta das isenções fiscais para os bilionários”, afirmou em Houston, no Texas, durante um comício na Federação Americana de Professores, nesta quinta-feira (25). Ela também defendeu o casamento gay: “Eles [Trump] também atacam a liberdade de amar quem você ama abertamente e com orgulho. Muitos de vocês devem saber que eu fui uma das primeiras a oficializar um casamento gay em 2004”.

No país do #Metoo e do #BlackLivesMatter, a primeira candidata negra à presidência, filha de pais imigrantes da Jamaica e da Índia, terá de lidar com o racismo, o preconceito e a misoginia da base trumpista, mas tudo indica que Harris contará com personalidades de peso neste processo.

Nesta semana, circulou nas redes uma entrevista do senador republicano J.D. Vance, vice na chapa de Trump, concedida à Fox em 2021, quando ele ainda era candidato ao senado por Ohio. Em sua fala, Vance ofende as mulheres que optam por não ter filhos e ataca as políticas democratas que fizeram esta escolha. “Como faz sentido entregarmos o nosso país a pessoas não têm realmente interesse direto nele?”, questiona, citando nominalmente Kamala Harris e a Alexandria Ocasio-Cortez, congressista democrata por Nova York.

A polêmica ganhou a adesão da atriz hollywoodiana Jennifer Aniston, que passou por dificuldades para engravidar. “Sr. Vance, rezo para que sua filha tenha a sorte de um dia ter seus próprios filhos. Espero que ela não precise recorrer à fertilização in vitro como segunda opção. Porque você também está tentando tirar isso dela”, respondeu pelo eX-Twitter.

Seis por Meia Dúzia?

Trump e Bolsonaro em 2022. Foto: Alan Santos/ Agência Brasil.

A campanha, como indicam as pesquisas, tende a ser bastante acirrada. Seu resultado, porém, pode impactar os demais países do Sul Global. É o que avalia Liszt Vieira ao considerar equivocada “a posição que iguala Kamala Harris a Trump, muito comum na esquerda”.

“Apesar de ambos os partidos, democrata e republicano, serem sempre intervencionistas e promoverem invasões militares, é preciso lembrar que Biden impediu um golpe militar que estava armado no Brasil (lembre o caso). E que Trump, caso seja eleito, vai apoiar a extrema direita em todo o mundo, inclusive Bolsonaro e seu projeto de uma ditadura militar de extrema direita”, argumenta.

Liszt, que também é ativista ambiental e presidiu entre 2002 e 2013 o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, citou o comportamento de Trump diante das questões ecológicas e dos compromissos dos Estados Unidos com o combate das mudanças climáticas. “Trump retirou o EUA de todos os tratados internacionais sobre meio ambiente, enquanto Biden retornou”, afirmou.

Em sua avaliação, “nós não podemos esquecer o que irá ocorrer nos EUA com o avanço brutal do supremacismo branco, da Klu Klux Klan, da Qanon e da obsessão pelas armas. Além do incentivo à expansão global da extrema-direita. Kamala defende o aborto, ampliação de saúde, da educação, e habitação. Não é pouca coisa nos EUA”, conclui.


Foto de capa: Kamala Harris durante seu primeiro discurso como pré-candidata à Casa Branca, em 23 de julho. Reprodução/X/@KamalaHarris.

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