Variedades do trabalhador do conhecimento
Peter Burke, na Introdução do segundo volume de seu livro Uma História Social do Conhecimento – II (Da Enciclopédia à Wikipédia), publicado por Jorge Zahar Editor em 2003, indica ele poder ser lido sozinho ou como uma continuação do Volume I – do Gutenberg a Diderot. Espera fazer uma versão revista dos dois volumes, com o título De Gutenberg ao Google.
A obra nasceu de uma curiosidade pessoal, procurando responder à pergunta: “por quais caminhos chegamos ao nosso estado atual de conhecimento coletivo?”. Como se viu liberado das “matérias” e dos “períodos letivos” pela aposentadoria – nasceu em 1937 –, foi mais fácil ele se entregar a essa curiosidade.
Dando continuidade a De Gutenberg a Diderot, este volume II apresenta uma visão geral das transformações no mundo do saber desde a Enciclopédia (1751-66) até a Wikipédia (2001). Seus temas principais são processos, entre eles, quantificação, secularização, profissionalização, especialização, democratização, globalização e tecnologização.
No período estudado, surgiram como tendências dominantes a profissionalização e a especialização. Apareceram muitos tipos de trabalhadores profissionais do conhecimento, por exemplo, exploradores, docentes, detetives, jornalistas, espiões, editores, assistentes de laboratório e gestores do conhecimento.
Burke não se esquece da contribuição de um amplo leque de diletantes: sua importância entrou no século XX e ressurgiu em nossa época com a Wikipédia e com o movimento pela Ciência Cidadã. É um tipo de ciência baseada na participação informada, consciente e voluntária, de milhares de cidadãos capazes de gerar e analisar grandes quantidades de dados, compartilhar o seu conhecimento e discutir e apresentar os resultados.
O autor se concentra em seis tipos de diletantes do conhecimento: o gentleman, o médico, o sacerdote, o soldado, o diplomata e a mulher. Na Europa, membros da elite, sobretudo rural, trabalhando sozinhos ou em sociedades eruditas, deram contribuições locais importantes a campos como História, Geologia, Botânica, Folclore, Arqueologia, Antropologia e outros temas.
Os estudiosos amadores enviavam descrições de suas descobertas a academias científicas ou aos profissionais da área, escreviam pessoalmente artigos para periódicos eruditos locais ou mesmo nacionais. Publicaram livros importantes.
A categoria “gentleman” não é fácil de traduzir para outros idiomas. Inclui empresários e banqueiros capazes de pesquisar conhecimentos, organizar levantamentos sociais, financiar pesquisas e dar contribuições importantes desde Geografia até Ciência Política.
Profissionais liberais cultos, quando adotam “o livre pensar”, dão contribuições de relevo em áreas de conhecimento fora de suas respectivas profissões. Por exemplo, médicos e cirurgiões se destacam pelas contribuições a outros campos além da Medicina, mesmo sendo suas pesquisas motivadas por suas preocupações com a Saúde Pública.
Burke não se esquece de outros tipos de trabalhadores do conhecimento: os facilitadores, como os gestores e os editores. Os gestores do conhecimento influem na direção e no volume de pesquisas empreendidas, bem como os dirigentes das editoras se dedicam à difusão do conhecimento.
A meio caminho entre o diletante e o profissional aparece a figura fugidia do intelectual. O termo remonta ao começo do século XX, e foi cunhado no contexto da controvérsia pública francesa sobre a inocência ou a culpa do capitão Dreyfus, oficial do Exército francês acusado de espionagem. Os escritores e acadêmicos envolvidos no debate ficaram conhecidos como intellectuels. Hoje, são vistos como intelectuais públicos.
No entanto, se usar o termo para os estudiosos em geral, deve-se incluir os professores universitários, desde a Idade Média, inclusive os humanistas do Renascimento. Mesmo se o termo se restringir a estudiosos e escritores capazes de expressar opiniões políticas na imprensa ou em outros meios de comunicação como a rede social de sites e blogs – em outras palavras, os “intelectuais públicos” –, a história desse grupo data pelo menos dos philosophes franceses do Iluminismo.
O surgimento dos intelectuais públicos, em meados do século XVIII, foi possível com o desenvolvimento de um mercado literário. Libertou os escritores da dependência do patronato e demarcou um momento importante na História Social do Conhecimento.
Burke distingue esses intelectuais públicos dos experts ou dos “tecnocratas”. A casta dos sábios tecnocratas aconselha os governos ou toma pessoalmente as decisões, detendo o poder de planejar o desenvolvimento de cidades ou economias nacionais.
Todos os exemplos de pessoas ligadas ao conhecimento são homens de classe média ou alta, levantando o problema do acesso de outros grupos sociais ao conhecimento. As iniciativas de disseminar o conhecimento, sobretudo o científico, entre as classes trabalhadoras são executadas quando as universidades recebem uma determinada cota de estudantes vindos do proletariado ou do campesinato, hoje, oriundos de gênero e etnia discriminados. O Estado fornece bolsas de estudos para alunos sem recursos para pagar os custos do Ensino Superior.
Mas permaneceram os obstáculos ao acesso popular ao conhecimento. A partir do fim do século XVIII, houve um movimento para abrir bibliotecas, galerias e museus ao público em países mais civilizados.
Uma parcela considerável de doações filantrópicas foi dedicada à criação de bibliotecas públicas. A pergunta controversa era: quem era “o público”?
Para alguns defensores das bibliotecas públicas, essas instituições eram uma maneira de democratizar o conhecimento. Mas acervos em princípio abertos a todos ficavam vetados na prática a pessoas sem uma aparência suficientemente respeitável…
A controvertida questão do acesso ao conhecimento também se estendeu ao sexo, além da classe social. Para as mulheres, as oportunidades de aprender e dar contribuições originais ao conhecimento foram se ampliando gradualmente, durante o período iniciado em 1754, quando foi concedido o primeiro doutorado a uma mulher.
Outros títulos de doutorado, apesar do precedente aberto naquele ano na Alemanha, demoraram mais – e as nomeações como docentes mais ainda. Uma exceção confirmava a regra: o primeiro Prêmio Nobel concedido a uma mulher foi em 1903 (Marie Curie), também sendo ela a primeira professora na Sorbonne, nomeada depois, em 1906.
Oportunidades não estavam disponíveis para as mulheres antes dos anos das Guerras Mundiais apesar do papel importante como popularizadoras da Ciência. Quando as mulheres realmente se encaminharam para a pesquisa às vezes sofriam de “invisibilidade” ou falta de reconhecimento.
A posteridade atribui frequentemente as realizações de cientistas menos conhecidos a grandes figuras mais conhecidas, como Newton ou Einstein. Esse “efeito” aplica-se com intensidade às mulheres.
Outro ponto relevante, abordado por Peter Burke, diz respeito à inovação institucional. Foi um papel-chave de novas instituições em incentivar a inovação, especialmente nos campos de conhecimento. Por exemplo, a UNICAMP foi criada em 5 de outubro de 1966.
As novas instituições estão livres do peso das tradições reproduzidas ao longo das gerações. Não tiveram tempo de desenvolver o chamado de “inércia estrutural”. Os alunos e os docentes ingressos em instituições antigas são incentivados a respeitar suas tradições e acabam por investir nessas tradições.
Fundar uma nova instituição, como uma universidade, pode exigir menos esforço em vez de reformar uma antiga. Os currículos de novas universidades são menos tradicionais diante de entidades mais antigas, inclusive inovações na chamada “pesquisa” ocorreram inteiramente fora das universidades, a saber, em observatórios, laboratórios etc.
A sensação de um “momento mágico” ocorre pela ausência de tradição. São passageiros, pois mais tarde os professores relembram “o entusiasmo da época da fundação”…
As histórias intelectuais, especialmente dos séculos XIX e XX, fazem referências constantes a “Escolas de Pensamento”. Essas escolas podem estar associadas a um indivíduo como Karl Marx ou John Maynard Keynes. Também podem estar associadas a lugares, geralmente, a cidades ou nações: a Escola de Economia de Chicago, a Escola de Teoria Crítica de Frankfurt, a Escola Austríaca, a Escola de Campinas etc.
As redes informais de líderes e seguidores, formados em universidades, associações ou laboratórios, são fundamentais para a transmissão de conhecimento, sobretudo de conhecimento tácito, e mesmo para sua produção. Conhecimento tácito é aquele adquirido ao longo da vida pela experiência. Geralmente, é difícil de ser formalizado ou explicado a outra pessoa, pois é subjetivo e inerente às habilidades de uma certa pessoa.
Enfim, a leitura de Peter Burke (na foto em destaque) ajudou-me na resposta à pergunta-chave: quem sou eu?
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.