Sistemas de solução de controvérsias com investidores preocupam até mesmo países ricos
Por Jomo Kwame Sundaram
KUALA LUMPUR – Governos de todo o mundo estão preocupados com os sistemas de solução de controvérsias entre investidores e Estados (ISDS, em inglês), que permitem que grupos estrangeiros os processem por bilhões de dólares devido a novas leis ou políticas que supostamente reduzem os lucros.
Os ISDS geralmente beneficiam as poderosas corporações transnacionais e muitas vezes impedem as mudanças políticas necessárias para enfrentar os novos desafios. Empresas transnacionais têm processado com sucesso governos por mudanças políticas que supostamente reduzem seus lucros.
O malvado de Oz
A gigante da indústria do tabaco, Philip Morris, tentou bloquear a exigência do governo australiano de embalagens simples, com advertências de saúde maiores e gráficos nos maços de cigarro, movendo uma ação com base no ISDS e também nos tribunais australianos. No caso interno, o Supremo Tribunal australiano considerou a nova legislação constitucional.
A empresa transferiu a Philip Morris Australia para Philip Morris Asia, em Hong Kong. Invocando o ISDS do tratado bilateral de investimento (TBI) entre Austrália e Hong Kong, processou a Austrália. Felizmente, o tribunal de ISDS determinou que não havia jurisdição, pois examinar o caso seria um abuso do processo.
Mais recentemente, o australiano Clive Palmer contratou um ex-procurador-geral para exigir quase 341 bilhões de dólares australianos (261 bilhões de dólares americanos) dos governos regionais após transferir suas principais empresas de mineração para Cingapura em 2019. Suas duas ações de ISDS invocam o Tratado de Livre Comércio Austrália-Nova Zelândia-Asean (Anzafta).
A primeira ação busca cerca de 300 bilhões de dólares australianos (191 bilhões de dólares americanos) em indenização e danos morais, depois que o Supremo Tribunal da Austrália decidiu a favor do governo do estado da Austrália Ocidental. Palmer contesta a legislação de 2022 daquela região porque potencialmente o deixa sem direito a reivindicações.
Ele também exige uma indenização de 41,3 bilhões de dólares australianos (26 bilhões de dólares americanos) pela negação da licença de exploração da mina de carvão Waratah, no estado de Queensland. A licença foi negada por motivos ambientais, incluindo o aumento das emissões de carbono.
Espera-se que Palmer inicie um terceiro processo de ISDS contra as decisões dos governos federal e de Queensland de rejeitar sua solicitação de licença para a mina de carvão devido ao provável impacto adverso no meio ambiente local, incluindo vias navegáveis e na Grande Barreira de Coral.
Mesmo que os governos regionais e federais ganhem esses casos, ainda incorrerão em despesas legais milionárias. Os casos da Philip Morris contra a Austrália duraram cinco anos e custaram 24 milhões de dólares australianos (15,2 milhões de dólares americanos) em despesas legais, dos quais o governo recuperou apenas metade.
Evitando as regras do ISDS?
Depois de experiências tão caras, há quase uma década, a Austrália conseguiu com sucesso uma exceção para o tabaco nas disposições do ISDS do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP).
A nova Estratégia Econômica da Austrália para o Sudeste Asiático até 2040, anunciada em 6 de setembro de 2023, promete revisar os acordos de livre comércio existentes com a região. Isso incluirá acordos que contenham cláusulas de ISDS, incluindo o Anzafta e outros acordos bilaterais e plurilaterais.
Através de cartas complementares, a Austrália já optou por se excluir das disposições de ISDS do Tratado Integral e Progressivo de Parceria Transpacífica (CPTPP, em inglês) tanto com o Reino Unido quanto com a Nova Zelândia.
Em um caso do ISDS, o Centro Internacional de Resolução de Disputas de Investimentos do Grupo Banco Mundial determinou que o Paquistão teria que pagar mais de 5,8 bilhões de dólares a um investidor prejudicado.
Isso equivale à totalidade do novo empréstimo de 6 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional (FMI), cerca de um oitavo de seu orçamento anual.
Outras resistências ao ISDS
O governo da Nova Zelândia também é contra o ISDS. Embora o ISDS faça parte de vários de seus tratados de livre comércio, como o CPTPP e o TLC entre China e Nova Zelândia, o governo se opôs às disposições do ISDS nas negociações dentro de seus acordos de liberalização comercial desde 2018.
Portanto, o ISDS não está presente no Acordo de Livre Comércio Regional Abrangente (RCEP), o acordo de livre comércio entre Nova Zelândia e o Reino Unido, nem no estabelecido entre Nova Zelândia e a União Europeia.
Embora tenha sido considerado tarde demais para excluir completamente o ISDS do CPTPP em uma fase avançada das negociações, a Nova Zelândia obteve cartas complementares com a Austrália, Brunei, Malásia, Peru e Vietnã. Isso significa que o ISDS não se aplica entre Nova Zelândia e esses cinco países, dos 11 que participam do tratado.
O governo atual do Chile também está preocupado com o mecanismo do ISDS. Portanto, pediu a todos os outros governos do CPTPP cartas complementares que excluam a norma de ISDS entre eles, mas até agora apenas a Nova Zelândia concordou.
Países ricos relutam nos sistemas de ISDS
Os Estados Unidos eliminaram a maioria das disposições do ISDS quando a administração de Donald Trump (2017-2021) substituiu o antigo Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) pelo Acordo México-Estados Unidos-Canadá (USMCA) em 2020.
O mecanismo do ISDS estava no TPP porque os negociadores da administração de Barack Obama o queriam. Mas a maioria dos candidatos presidenciais que o sucederam em 2016, incluindo os democratas, rejeitaram o TPP.
Robert Lighthizer, representante de Comércio dos Estados Unidos no governo Trump, citou especificamente o ISDS como a razão pela retirada dos Estados Unidos do TPP.
O atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, manteve a postura anti-ISDS de Trump em vez de voltar à posição de Obama. O mecanismo do ISDS não está presente nos acordos de cooperação econômica estabelecidos por sua administração, como o Marco Econômico Indo-Pacífico.
Enquanto isso, a União Europeia (UE) está instando a se retirar do Tratado sobre a Carta da Energia (TCE), pois suas disposições do ISDS bloquearão as políticas climáticas europeias necessárias. Vários países da UE e de fora dela já começaram a se retirar do TCE, alegando que ele limita sua capacidade de agir contra o aquecimento global.
Os países em desenvolvimento dizem não
Muitos países do Sul em desenvolvimento já começaram a se retirar de seus tratados bilaterais de investimentos, os TBI, enquanto o RCEP não inclui o ISDS. Portanto, as disposições de ISDS do CPTPP e de outros TBI e acordos de livre comércio (ALC) ou tratados de livre comércio (TLC) ficaram desatualizadas.
Pior ainda, eles impedem de enfrentar emergências, como a pandemia de COVID-19 e o aquecimento global.
Os países devem rejeitar e até se retirar dos TBI e ALC com ISDS. Afinal, não há evidências de que esses mecanismos atraiam investimento estrangeiro direto. Cada vez mais países em desenvolvimento, como Índia, Indonésia, Paquistão, Equador, África do Sul e outros, já se retiraram desse tipo de TBI.
Os governos devem revisar e eliminar urgentemente as disposições do ISDS de todos os TBI e ALC ou TLC existentes, ou se retirar deles, para evitar mais casos caros de ISDS. Eles devem ser mais críticos e cuidadosos ao garantir futuros acordos de cooperação econômica para garantir que realmente sirvam a seus interesses atuais e futuros.
*Imagem em destaque: Os sistemas de solução de controvérsias entre Estados e investidores são cada vez mais criticados pelos governos do Norte e do Sul, por favorecerem geralmente as grandes corporações transnacionais (CADTM).
**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução de Marcos Diniz
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