Economia e religião na Rússia soviética
Keynes admite: “se eu fosse russo, contribuiria com a minha quota de atividade para a Rússia Soviética em vez de ser para a Rússia czarista!“
Após uma visita, em 1925, Keynes escreveu três artigos posteriormente publicados como “Uma breve visão da Rússia”. Sua hipótese apriorística foi: “não compreenderemos o leninismo a menos caso não o vejamos como sendo ao mesmo tempo uma religião perseguidora e missionária e uma técnica econômica experimental”.
No segundo e terceiro artigos, depois de focalizar “a religião comunista”, analisa mais a economia da Rússia Soviética. Reconhece o caráter experimental do ineditismo de uma revolução em nome do proletariado: “a doutrina defendida inicialmente de o dinheiro ser abolido para a maioria dos fins é agora considerada errada, não havendo nada inconsistente com a essência do comunismo em continuar a usar o dinheiro como instrumento de distribuição e cálculo”.
O governo soviético também chegou à conclusão de ser mais sensato combinar uma política de tolerância limitada com provocações e perseguições intermitentes contra a velha intelectualidade, os comerciantes privados, e mesmo contra os capitalistas estrangeiros, em vez de tentar eliminar completamente estes elementos. Confiava, por um lado, no controle completo da máquina educativa e na educação dos jovens e, por outro lado, na melhoria gradual da técnica de comércio estatal e no crescimento da capital do Estado, para dispensar esses “auxiliares pagãos” (por não professarem a fé comunista) com o passar do tempo.
Quase todos os membros da intelectualidade não-comunista com educação pré-guerra estavam ao serviço do novo governo, em muitos casos, em cargos importantes e de responsabilidade com salários relativamente elevados. O comércio privado tornou-se novamente legal, embora precário e difícil. Os capitalistas estrangeiros, ao concederem créditos comerciais em curto prazo para as importações governamentais da Rússia, podiam contar com alguma certeza de verem o seu dinheiro de volta no devido tempo.
Por essa busca flutuante das melhores conveniências práticas, Keynes achava difícil generalizar a respeito da Rússia Soviética. Como estimar a eficiência do sistema econômico, quando sofreu logo nos seus primeiros anos as duras condições materiais com perdas materiais e a desorganização da I Grande Guerra, seguidas por uma sucessão de guerras civis, pelo boicote do resto do mundo e por várias colheitas ruins? Tudo isto teria danificado qualquer sistema econômico!
Os experimentalistas soviéticos esperavam decorrer pelo menos cinco anos de paz e bom tempo antes de serem julgados apenas pelos resultados econômicos. Keynes diagnosticava: qualquer generalização a partir das condições então vigentes, mesmo com seu baixo nível de eficiência, seria o sistema funcionar e ter elementos de permanência.
No último ensaio, ele se dedicou a responder à terceira pergunta: poderá o comunismo, com o passar do tempo, com suficiente diluição e adição de impureza, capturar a multidão? Sua resposta, em 1925, foi: se o comunismo alcançar um certo sucesso, irá alcançá-lo não como uma técnica econômica melhorada, mas como uma religião.
A tendência das críticas convencionais era cometer dois erros opostos: exagerar a ineficiência econômica do “comunismo odiado” pelos críticos; impressionar tanto com a sua ineficiência econômica a ponto de subestimar a fé comunista como nova religião.
Do lado econômico, Keynes avalia o comunismo russo não ter dado qualquer contribuição, para enfrentar problemas econômicos, de interesse intelectual ou valor científico. Não ofereceu qualquer peça de técnica econômica útil a qual não pudesse ser aplicada com igual ou maior sucesso em uma sociedade do capitalismo individualista.
Pelo menos teoricamente, não acreditava existir qualquer melhoria econômica para a qual uma revolução seja um instrumento necessário. A sociedade tem tudo a perder com os métodos de mudança violenta. “Nas condições industriais ocidentais, as táticas da Revolução Vermelha atirariam toda a população para um poço de pobreza e morte”.
Mas como religião quais eram as suas forças? O dogma da exaltação do homem comum conquistou a multidão nos 8 primeiros anos. “Qualquer religião e o vínculo capaz de unir os correligionários sobrepõe-se ao atomismo egoísta dos irreligiosos”.
Keynes contrapõe, de maneira incoerente, por não tratar a sua ideologia liberal também como uma “religião”, o comunismo russo ao capitalismo moderno. Este seria absolutamente irreligioso, sem união interna, sem muito espírito público, com um mero amontoado de proprietários – e perseguidores de ser. Argumenta: “tal sistema tem de ser imensamente, e não apenas moderadamente, bem-sucedido para sobreviver”.
Mas a sociedade ocidental, reconhecia Keynes, passava a duvidar de o homem de negócios estar a levando a um destino muito melhor se comparado ao lugar atual. Começava a se perguntar se as vantagens materiais de manter os negócios e a religião em compartimentos diferentes eram suficientes para equilibrar as desvantagens morais.
Os protestantes e os puritanos podiam separá-los, confortavelmente, porque a primeira atividade (econômica) pertencia à terra mundana e a segunda (religiosa) ao céu, ou seja, estava em outro lugar. Hoje, os protestantes uniram as duas na Teologia da Prosperidade.
Keynes questiona: “se o céu não está em outro lugar e não está no futuro, deve estar aqui e agora – ou não estar. Se não existe um objetivo moral no progresso econômico, segue-se não devemos sacrificar, nem por um dia, a moral em prol de vantagens materiais. Em outras palavras, não podemos mais manter os negócios e a religião em compartimentos separados da alma”.
Alertava: “se os pensamentos de um homem comum sejam capazes de se desviar por estes caminhos, ele estará pronto a procurar com curiosidade por algo no coração do comunismo”.
Parecia a Keynes cada dia mais claro: “o problema moral da nossa época está relacionado com o amor ao dinheiro, com o apelo habitual à motivação monetária em nove décimos das atividades da vida, com o esforço universal pela procura econômica individual. A segurança é vista como o principal objetivo do esforço, com a aprovação social do dinheiro como medida do sucesso construtivo e com o apelo social ao instinto de acumulação como a base da provisão necessária para a família e para o futuro”.
Afirmava as religiões decadentes terem cada vez menos interesse para a maioria das pessoas, exceto caso seja como uma forma agradável de cerimonial mágico ou de observância social aos domingos. Perderam o seu significado moral porque não tocavam nessas questões essenciais.
Uma revolução nas formas de pensar e sentir em relação ao dinheiro poderia se tornar o propósito crescente das concretizações contemporâneas do ideal. “Talvez, portanto, o comunismo russo represente os primeiros movimentos confusos de uma grande religião”.
Para encerrar o ensaio, Keynes admite: “se eu fosse russo, contribuiria com a minha quota de atividade para a Rússia Soviética em vez de ser para a Rússia czarista! Eu não poderia subscrever a nova fé oficial e muito menos a antiga. Eu detestaria as ações dos novos tiranos não menos como das dos antigos. Mas eu sentiria meus olhos estarem voltados para as possibilidades das coisas, e não mais para longe delas”.
Enfim, reconhece da crueldade e da estupidez da Velha Rússia nada poderia emergir, mas sob a crueldade e a estupidez da Nova Rússia alguma partícula do ideal podia estar escondida.
A santificação da poupança tendia perigosamente para o lado do dinheiro abstrato. O crescimento da riqueza individual fazia o mesmo. Keynes achava prudente sabermos as consequências de todas as nossas ações em termos de dinheiro. “Deveríamos estar transmutando valores reais em valores monetários sem conhecimento suficiente ou força de imaginação para traduzi-los novamente?”
Este Norte evitaria tomarmos decisões irreais o tempo todo. Por exemplo, supomos saber de antemão, com certeza, os diferentes rendimentos resultantes de diferentes modos de vida. Os russos optariam pela fé comunista caso adivinhassem o futuro?
O fim da União Soviética ocorreu, em 1991, após a abertura política e econômica do governo Gorbatchev e o movimento político de Boris Iéltsin. O governo Gorbatchev (1985-1991) realizou dois projetos de reforma: a Glasnost, uma abertura política do regime; e a Perestroika, uma reestruturação econômica.
Nesse contexto de crise geral, o deputado Boris Iéltsin se tornou presidente da Rússia e iniciou um movimento de dissolução da União Soviética. As causas do seu fim estão ligadas à crise econômica, ao desgaste político e às tensões sociais.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.