“Estelionato” da I.A. já provoca greves
Se a I.A. não é capaz de gerar arte, porque não tem criatividade no sentido orgânico do termo, como o marketing dá a entender o contrário? A atual greve dos roteiristas norte-americanos, à qual aderiram atrizes e atores, fornece uma pista do jogo pesado que subsidia o discurso marqueteiro dos empregos condenados.
Segundo o Aurélio, estelionato, do latim stellionattu, é o ato de obter, para si ou para outrem, vantagem patrimonial ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo em erro alguém, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. É o que estamos vendo acontecer na crescente maré de notícias sobre as aplicações da chamada Inteligência Artificial. No início deste ano a mídia alardeou as mais de três centenas de atividades profissionais condenadas à eminente obsolescência. No campo do audiovisual, no qual trabalho, o assunto foi longamente debatido nos grupos de roteiristas. Não é difícil imaginar o que também passa na cabeça dos tradutores, jornalistas, editores, designers, professores, etc.
Entre profissionais do roteiro, a par da questão da sobrevivência financeira entrou em pauta a própria natureza da autoria. A pergunta “quem assina um roteiro gerado por I.A. ?” levanta uma longa série de questões, das quais fazem parte os créditos da criação e o pagamento de direitos autorais. Apesar do marketing das Big Techs querer nos convencer da capacidade criativa das I.A.s, sabemos que a criatividade resulta de um processo complexo levado a cabo por um organismo vivo (nosso corpo). Criação e emoção, que andam juntas, não são redutíveis a algoritmos e escapam aos mecanismos de geração de conteúdo das I.A.s, que reciclam e se apropriam do que já foi gerado por humanos ou outras I.A.s, segundo filtros pré-determinados. Claro está que algumas aplicações da I.A. têm se revelado uma ferramenta interessante na mão de criadores, mas daí a afirmar que irá substituí-los é outra história.
Se a I.A. não é capaz de gerar arte, porque não tem criatividade no sentido orgânico do termo, como o marketing dá a entender o contrário? A atual greve dos roteiristas norte-americanos, à qual aderiram atrizes e atores, fornece uma pista do jogo pesado que subsidia o discurso marqueteiro dos empregos condenados. Enquanto segue a passos largos a dilapidação dos recursos naturais, malgrado os alertas da ciência, foi dada a largada para o roubo da cultura. Um acervo de valor inestimável, gerado ao longo de muitos milênios e cuja apropriação, por parte de algumas corporações, passa ladinamente pela desvalorização do ato criativo. A partir do momento em que o discurso vigente naturaliza que uma máquina possa escrever um romance “tão bom quanto um escritor”, fazer uma locução ou interpretar um papel “tão bem quanto um ator vivo ou morto”, o valor do trabalho destes profissionais torna-se nada. As máquinas geradoras de conteúdo não citam as referências que utilizaram e que necessariamente subsidiam o conteúdo que entregam.
Essa “narrativa” sobre a chamada Inteligência artificial não começou com o chat GPT, é parte do velho discurso da inevitabilidade de um progresso que mecaniza para maximizar lucros. Quando as máquinas substituíram os operários nas linhas de montagem o processo foi naturalizado. Parecia fazer sentido produzir bens a “menor custo e maior quantidade” para que mais pessoas pudessem consumir. Azar dos operários, alegria dos consumidores. Idem para o sistema bancário. Faço parte da geração que talvez tenha gasto, somando todos os minutos, semanas da vida esperando a vez de sacar dinheiro ou conversar com o gerente. Os caixas automáticos, e mais recentemente os apps, permitem que as pessoas possam ir ao banco sem sair de casa. Exemplos não faltam de como a automação, uma modalidade neolítica da Inteligência Artificial, ajudou a baratear algumas coisas e a economizar o nosso tempo.
E então vem o chat GPT levantar a lebre de todas as facilidades às quais a humanidade terá acesso graças aos algoritmos diligentes e chegamos nas mais de 300 profissões em obsolescência programada. Que profissionais do cérebro físico, por assim dizer, se desesperem face à possibilidade de perder seus empregos só mostra o quanto as profissões liberais não entenderam que um dia a água bateria no seu delicado pescoço. O que pensar dos cientistas alertando que a aplicação descontrolada da I.A. pode significar o fim da humanidade? Gritam porque os próximos a perder o emprego serão eles, dirão os cínicos.
Levada às últimas consequências, a narrativa das profissões obsoletas leva ao problema do desemprego e à conclusão que tem gente sobrando no planeta, descartáveis que poderiam desaparecer num vórtice do espaço-tempo, fornos crematórios ou naufragando em barcos de imigrantes clandestinos. Faz sentido um mundo onde apenas robôs trabalhem e alguns poucos continuem aplicando seus trilhões sem levantar da espreguiçadeira do resort? Ou de algum bunker anti-radioativo, na hipótese dos programas de I.A. desenvolvidos por grupos econômicos competitivos resolverem ir às vias de fato? Também dá para pensar que o problema não esteja nas máquinas, robôs ou tecnologias de modo geral, mas no uso que se faz delas. No momento, trata-se de institucionalizar um dos maiores roubos da história. E não adianta contar com a educação, filmes e livros para fomentar a crítica porque estes, se gerados por I.A., irão tão somente replicar um pensamento único.
Marta Nehring, cineasta e pesquisadora, entre outros trabalhos assina o roteiro do documentário “Eu eu eu José Lewgoy “ e da série “Mil dias: a saga da construção de Brasília ”.