Europa, um continente em conflito
Um russo e um francês não se entendem entre si, assim como um dinamarquês e um espanhol, se falarem em suas próprias línguas. E ninguém entende um basco. Mesmo o castelhano e o português, que são tão próximas, permitem o perfeito entendimento entre os seus nativos falantes. Faz lembrar o mito da Torre de Babel, quando por castigo de Deus por sua soberba, os homens deixaram de falar a mesma língua e passaram a se desentender.
É assim a Europa. Um continente formado por 50 países, um dos menores do mundo e onde se falam 60 línguas diferentes, sendo 24 as línguas oficiais da União Europeia. Mesmo dentro de um mesmo país, um povo tem dificuldade de entender ao outro, como é o caso entre um galego e um catalão, ambos espanhóis, pelo menos oficialmente. Ou um russo e um ucraniano, que foram um mesmo país e hoje se enfrentam em uma guerra brutal. Na Suíça, são quatro as línguas oficiais num único e pequeno país: francês, italiano, alemão e romanche, no cantão dos Grisões.
As guerras
Talvez esta multiplicidade de línguas e as dificuldades de entendimento sejam facetas da história das guerras na Europa, tantas e tão violentas. Uma delas, entre a Inglaterra e a França, chegou a durar 100 anos. E também talvez estejam na raiz das dificuldades de existência da União Europeia, um projeto político de 27 daqueles 50 países desde que o Reino Unido se retirou.
O sonho de François Miterrand, Helmut Kohl e outros estadistas europeus era o de uma Europa unida e interdependente, pois assim seria afastada a maldição das guerras. O velho continente havia sido palco recente de duas sangrentas guerras mundiais e a paz se anunciava possível, desde que assim quisessem os condutores políticos.O projeto dessa utopia, acalentada por líderes idealistas, não é uma construção feita na tranquilidade dos objetivos comuns a todos os países que a ele aderiram. Esteve sempre ameaçado pelas contradições internas e permanece em estado de lactância, continuamente desafiado pela extrema direita política e seu nacionalismo chauvinista.
Euroceticismo
Há um papel que desempenham os partidos e governos de extrema direita que ameaçam a unidade da Europa com um enorme retrocesso civilizatório. Ao lado dos preconceitos ideológicos que lhes são comuns, eles são contra a existência da União Europeia e defendem o fortalecimento e a prevalência do nacionalismo em lugar do que dizem ser uma ideia federativa.
O chamado euroceticismo, a descrença e oposição ao projeto de união da Europa, que alguns chegam a classificar como ideologia, não é um fenômeno novo e existe desde a criação da Comunidade Europeia do Carvão e Aço, em 1951, que foi precursora da UE. Mas o termo euroceticismo foi cunhado em 1985 pelo jornal The Times, de Londres, para designar os membros do Partido Conservador que já não acreditavam na integração de todo o continente. Era a semente do Brexit, que veio a dar seu fruto no dia 31 de janeiro de 2020, quando o Reino Unido deixou de ser um Estado-Membro da União.
As dificuldades de integração do Reino Unido à Europa não são novas. Vêm desde a época em que existia o Império Britânico que durou três séculos. A passagem de Estado Imperial global para Estado-Membro de uma comunidade de nações nunca foi vista com simpatia pelos britânicos, que veem a si mesmos como superiores e distintos dos europeus que habitam o que eles chamam com um certo desprezo de “o continente”. Em síntese são estas as principais razões apontadas para o sentimento anti-europeu dos ingleses que está nas raízes do Brexit.
O euroceticismo tornou-se mais agudo e confuso com as últimas crises que a Europa enfrentou: a crise da dívida pública que começou em 2008 e até 2014 abalou a zona do euro; a crise humanitária de 2015, com a chegada de mais de um milhão de refugiados a pedir asilo, dos quais mais de 3 mil morreram afogados na travessia do Mediterrâneo; a crise do Brexit em 2016 e a crise da pandemia. A guerra da Ucrânia veio provocar um efeito diferente, unindo os países da Europa em torno da mística do acordo militar representado pela OTAN.
Paul Taggart e Aleks Szczerbiak, dois estudiosos da Universidade de Sussex, na Inglaterra, classificaram o euroceticismo como “hard” (forte), que defende o completo desmantelamento da União Europeia, e“soft” (suave), que critica políticas específicas do bloco e propõe reformas. A categoria “hard” está alinhada à direita, enquanto o euroceticismo de esquerda seria do tipo “soft”. As teses da direita e da extrema direita se misturam com bandeiras populistas e fazem da União Europeia o bode expiatório de todos os problemas que afligem o cidadão comum. A principal crítica da esquerda reside no ideário político neoliberal adotado pela UE.
A confusão causada pelo Brexit e a discussão em torno da deserção do Reino Unido, bem como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia fizeram diminuir um pouco os arroubos dos eurocéticos. A pandemia e a percepção da importância da mútua colaboração entre países foi outro fator de contenção do euroceticismo nas camadas da classe média que de uma forma ou de outra lhe davam ou lhe dão apoio.
Para Miterrand a união da Europa não seria uma mística nem uma utopia e sim uma obra da razão ditada por uma necessidade histórica: evitar a repetição do mal absoluto que foram as duas guerras mundiais. “A guerra, disse ele, não é apenas o passado, pode ser nosso futuro”.
“O nacionalismo é a guerra”, arrematou num discurso em Estrasburgo, perante o Parlamento europeu, na presença dos representantes de todos os países que formavam a União Europeia.
A eclosão da guerra da Ucrânia e outros conflitos vieram lhe dar razão.
Estudante de História e de Direito, um dos membros fundadores do movimento Geração 68 Sempre na Luta, faz parte da equipe executiva e da equipe de redação do Fórum 21 e produz, às quintas-feiras, o Focos 21