Limitar o poder das ‘big techs’
Muito tem sido escrito a respeito do enorme poder que vem sendo conquistado pelas chamadas “big techs” no mundo globalizado. Estas grandes corporações do universo que tangencia os espaços das comunicações, da informação e da tecnologia digital de ponta revelam a faceta concentradora e oligopolista do capitalismo contemporâneo. Enfim, ainda que esta tendência seja uma característica intrínseca a esse modo de produção desde sempre, o fato é que a realidade da internacionalização e da financeirização do mesmo aponta perigosamente para os riscos que tal processo inédito de concentração de capital, de poder político e de mercado coloca para a maioria da população do planeta.
Ancorado no discurso demagógico da liberdade de ação das forças de oferta e demanda, os mastodontes da era digital buscam consolidar e ampliar sua capacidade econômica de ditar as regras de forma ampla e de influenciar os rumos da civilização nesse final do primeiro quartel do século XXI. Informação e dados converteram-se em mercadoria estratégica. A disputa pelo acesso a esses bens intangíveis marca as verdadeiras guerras de posição que são travadas cotidianamente pelos principais atores envolvidos no processo. Os governos dos diferentes países, os oligopólios da era digital, as demais empresas produtoras de bens e serviços e a absoluta maioria da população consumidora do globo, dentre outros, são portadores de interesses diversos e antagônicos. Todos participam deste complexo movimento que está moldando o novo sistema ainda em gestação e que deverá se tornar hegemônico ao longo das próximas décadas.
O conhecido economista norte-americano, Joseph Stiglitz, laureado com o Prêmio Nobel da área em 2001, resolveu assumir mais esta bandeira em seus escritos e em suas intervenções no debate público. O ex economista chefe do Banco Mundial tem se pautado por apresentar críticas à visão fundamentalista dos defensores do neoliberalismo e mais recentemente incorporou a temática das “big techs” em suas manifestações. Em artigo publicado no mês passado, ele elogiou a posição do Presidente Joe Biden por ter abandonado o livre-mercadismo de seu antecessor, Donald Trump, no tratamento do tema. No texto, Stiglitz chama atenção para necessidade de se promover uma maior e mais detalhada regulamentação do poder das atividades de tais grupos econômicos. Para ele, trata-se de combinar uma defesa de uma inserção mais soberana dos Estados Unidos e dos demais países nessa etapa do capitalismo global. E, ao mesmo tempo, introduzir medidas de defesa e de salvaguarda dos direitos dos cidadãos e dos consumidores com relação à negociação de seus dados pessoais privados e/ou sigilosos.
O atual mandatário da Casa Branca tem proposto medidas que limitam o poder de empresas chinesas e também outras que restringem a excessiva liberdade que havia sido concedida aos conglomerados da era digital por aquele que o antecedeu. A defesa dos direitos das partes mais fracas nas relações comerciais explícitas ou implícitas com as empresas da área de tecnologia digital de ponta tem sido objeto de severa crítica por parte de todos aqueles grupos que deverão perder o poder ilimitado com que contam até o presente momento. Stiglitz alerta para necessidade de regulamentar esse novo mercado, em especial para a importância estratégica de tornar este assunto um item presente na agenda global e nos fóruns multilaterais. Segundo ele,
(..) “As empresas de tecnologia sabem que se houver um debate aberto e democrático, as preocupações dos consumidores com as salvaguardas digitais facilmente vencerão as preocupações com suas margens de lucro. Assim, lobistas do setor andam ocupados tentando provocar um curto-circuito no processo democrático. Um de seus métodos é pressionar por cláusulas obscuras destinadas a contornar o que os EUA e outros países fazem para proteger os dados pessoais.” (…)
Segundo ele, o momento de regulamentação é urgente. Trata-se de colocar um freio no acesso descontrolado e permissivo com que as “big techs” se apropriam de informações confidenciais de cidadãos e empresas pelo mundo afora. Stiglitz deixa clara sua indignação com a facilidade e o desrespeito com que as informações e os dados circulam e são negociados sem o conhecimento, o aval ou o consentimento de seus proprietários:
(…) “As empresas que ganham dinheiro com nossos dados (incluindo informações pessoais médicas, financeiras e de geolocalização) passaram anos tentando equiparar os “fluxos de dados livres” com a liberdade de expressão. Elas tentarão enquadrar quaisquer proteções do governo Biden ao interesse público como um esforço para impedir o acesso a sites de notícias, paralisar a internet e empoderar autoritários. Isso é um absurdo.” (…)
O debate proposto pelo estadunidense ganhou repercussão em nosso País. Em artigo publicado a partir da motivação perada pelo texto de Stiglitz, o especialista em políticas públicas e gestão governamental James Görgen busca incorporar as preocupações do Prêmio Nobel e apontar algumas particularidades desta questão para a realidade brasileira. Ele ressalta suas preocupações com o crescente processo de transformação de dados e informações em mercadorias e sua utilização como peça-chave nesta nova etapa de acumulação capitalista mundializada:
(…) “No momento em que o mundo atravessa uma nova revolução tecnológica, proporcionada pela comoditização de semicondutores e pela universalização do acesso à Internet, os dados de cidadãos, empresas e governos passaram a ser um ativo dos mais relevantes para a geração de riqueza nas economias globais.” (…)
A imensa assimetria existente em tais mercados e a absoluta falta de transparência ali reinante faz dos mesmos uma oportunidade ímpar para intervenções semelhantes às práticas de épocas características de acumulação primitiva de capital. Por ali reina a lógica e a conduta da lei da selva em seu estado mais bruto. Além disso, a ausência de regulação estatal sobre um mercado marcado pela prática das disputas espoliativas revela um quadro preocupante. Segundo Görgen,
(…) “Resumidamente, a monetização de dados pessoais está por trás de um modelo de negócios onde as informações coletadas a todo instante são negociadas com base em uma classificação que atribui valores diferentes a diversos tipos de dados. Essas transações ocorrem constantemente em uma camada não visível para os usuários, resultando na venda de dados a cada segundo. Durante esse processo, os dados dos usuários se transformam em commodities, com seu valor financeiro sendo avaliado e transacionado. Essa prática gerou um mercado global trilionário que ainda está por ser mensurado.” (…)
Assim como Stiglitz, o autor brasileiro chama a atenção para necessidade de uma abordagem global, por meio de um enfrentamento de tal problemática em escala mundial. A própria dimensão exagerada dos conglomerados e a possibilidade de atuação dos mesmos a partir de espaços não identificados como pertencentes a algum país são inovações que passam a exigir uma regulamentação coordenada e abrangente em escala transcontinental. Segundo ele,
(…) “Diante deste contexto e conjuntura, parece fundamental enfrentar esse tema de uma forma sistêmica e global no âmbito do G-20, da OMC e em outros fóruns e organismos do sistema multilateral internacional. É preciso que os Países do Sul Global não sejam relegados a atuar como meros coadjuvantes da geração de riqueza advinda de uma economia baseada em dados e de sua apropriação por economias de outras regiões.” (…)
O Brasil parece continuar bastante atrasado nesse debate e são poucas e tímidas as medidas para corrigir e mesmo se antecipar aos problemas criados pela atuação descontrolada das “big techs”. Aspectos como “fake news”, internet profunda e inteligência artificial seguem sendo tratados com bastante complacência. Chamam a atenção a ausência de medidas de regulamentação efetiva e também a inexistência de políticas públicas que delimitem e impeçam o abuso de poder. tendem a dificultar a defesa da maioria dos setores da sociedade. Impressiona que até mesmo as informações confidenciais e estratégicas das políticas de Estado estejam disponíveis para uso e acesso por parte das “big techs”. Até hoje a administração pública brasileira depende das grandes corporações para recolher, elaborar e armazenar suas informações fundamentais, inclusive de segurança nacional e de defesa. Uma loucura!
O professor Sergio Amadeu vem denunciando esse caminho adotado pelo Brasil há muito tempo. Para ele, o risco é o nosso País se transformar de fato naquilo que qualifica de “colônia digital”. Em artigo publicado há alguns anos, o estudioso da matéria explicava:
(…) “”As corporações de tecnologia exploram a experiência humana como matéria-prima gratuita. Tratam os dados comportamentais como sua propriedade, numa dinâmica de usurpação” (…)
Caso nada seja feito em termos de políticas públicas para minorar os efeitos negativos de tal trilha, a tendência é que o sistema portador de desigualdade e acelerador da concentração seja estabelecido como “novo normal” desta nova etapa do capitalismo global financeirizado.
(…) “as grandes corporações de tecnologia atuam como novos colonizadores. Utilizam sua capacidade tecnológica para oferecer dispositivos e interfaces gratuitas ou a baixíssimo custo para fidelizar populações inteiras às suas infraestruturas de extração de dados. Nas plataformas digitais, mais do que “melhorar nossa experiência”, um excedente comportamental é consolidado em dados que são extraídos como se fossem recursos naturais.” (…)
As ponderações e os alertas levantados por Stiglitz, Görgen e Amadeu deveriam merecer a atenção especial e os cuidados da parte dos nossos dirigentes políticos. Enfrentar os desafios para preservar a defesa da soberania nacional e o respeito aos direitos de cidadãos e empresas deveria ser prioridade absoluta na agenda pública.
*Imagem em destaque: Wikimedia Commons
Doutor em Economia e membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal.