Pegada ecológica
O autor do livro Material World: A Substantial Story Of Our Past And Future [Mundo Material: Uma História Substancial do Nosso Passado e Futuro] (WH Allen/Penguin Random House, 2023), Ed Conway, destaca um lado mais sombrio no progresso material. Parte da explicação de como os humanos se tornam cada vez melhores em criar e fazer coisas se resumia ao aprendizado e à experiência – à chamada Lei de Wright.
Simultaneamente, subiam uma escada energética. Da madeira ao carvão e deste ao petróleo e daí ao gás, a densidade energética destes combustíveis aumentou a cada passo. Propiciavam mais energia queimando comparativamente menos combustível.
Ao longo do caminho, os humanos passam de depender do sol para todo o sustento, complementado por alguns fertilizantes extraídos de materiais estratégicos, para depender de combustíveis fósseis. Praticamente todos os alimentos são nutridos com fertilizantes feitos de gás natural.
Permitiram a população global crescer para além dos seus limites malthusianos. No entanto, houve um aumento aritmético na quantidade de combustíveis fósseis queimados.
Há um paradoxo: sem os combustíveis fósseis, cerca de metade da população não estaria viva. No entanto, agora, as emissões de carbono provenientes desses combustíveis fósseis causam problemas ameaçadores a todos nós.
O propósito dos humanos lúcidos é reduzir as emissões de carbono a zero em termos líquidos, isto é, depois de contabilizar o CO2 retirado da atmosfera, seja capturando-o, seja plantando árvores.
A “data mágica”, escolhida para esta transição, é meados deste século – 2050 – pouco exequível, exceto pelo fato de ser um belo número redondo. Mas fazer o mundo chegar a zero emissões líquidas até lá coloca toda a população mundial em uma posição decente para manter o aquecimento global abaixo dos 2°C e talvez até perto de 1,5°C.
Porém, nenhuma transição energética deste tipo foi alcançada tão rapidamente. Cada uma das transições anteriores – a passagem do carvão para o petróleo e do petróleo para o gás – houve um grande incentivo para a mudança: os fabricantes poderiam beneficiar de combustíveis mais baratos e com maior densidade energética.
Desta vez, acontece o oposto. Com exceção da energia nuclear, a migração é para fontes de energia menos densas. Pior, o desafio é fazê-lo mesmo quando as nações mais populosas do mundo (exceto os EUA, China, Índia, Indonésia, Paquistão, Nigéria, Brasil) se industrializam e, portanto, aumentam o seu consumo de energia.
Muitas pessoas ecologistas quando pensam na transição energética tendem principalmente a pensar em termos de eletricidade. Ficam otimistas com a energia renovável, como a solar e a eólica: são necessárias, mas insuficientes.
Mas ela é inerentemente intermitente. Os humanos têm de construir o armazenamento de energia possível de ajudar a manter as redes em funcionamento quando o sol não está brilhando e o vento não está soprando.
As baterias, embora sejam excelentes, não têm densidade energética suficiente para resolver esse enigma. O backup mais provável, juntamente com uma série de novos reservatórios hidroelétricos, é um combustível totalmente novo: o hidrogênio.
Um carro completamente silencioso, movido a eletricidade, capaz de percorrer quase 600 quilômetros sem precisar reabastecer, e soltando vapor d’água pelo escapamento, é o Toyota Mirai. Este veículo foi emprestado para os testes de um projeto-piloto na USP (Universidade de São Paulo) para produzir o primeiro hidrogênio verde a base de etanol do mundo.
Mirai significa “futuro” em japonês, mas, apesar de sugestivo, a escolha do carro se relaciona com o fato de ele ser um dos únicos modelos equipados com células de combustível (fuel cell, em inglês). Transforma hidrogênio em eletricidade.
No mundo, pensa-se em vez de utilizar carvão ou gás para produzir os fertilizantes, no futuro poder alimentar a população com amoníaco produzido a partir de hidrogênio verde, criado a partir da energia eólica. No entanto, como mostra Conway em 2023, usar a eletrólise para criar hidrogênio ainda é extremamente ineficiente.
A produção de fertilizantes representa apenas uma pequena parte industrial. A fabricação de aço verde consumirá ainda mais hidrogênio.
A eletricidade é a parte fácil. Afinal, o que é uma turbina eólica offshore? Conway resume: uma estrutura feita de vidro, ferro, cobre e óleo, com uma pitada de sal…
Não há maneira de produzir em massa turbinas eólicas ou, nesse caso, os substratos de silício dos painéis solares, sem o uso de combustíveis fósseis. As pás da turbina eólica, em particular, são feitas de resinas extraídas principalmente do petróleo bruto e do gás natural. Outro exemplo: não é possível fabricar baterias de íons de lítio de alto desempenho sem usar grafite obtido do petróleo bruto.
Uma distinção importante entre esta utilização de combustíveis fósseis e a forma utilizada nos três séculos anteriores é agora estar juntos com eles, não queimando-os. Com a exceção do carvão coqueificável, para produzir silício metalúrgico, o desafio atual é transformar esses combustíveis fósseis em produtos, em vez de ser apenas um fluxo de energia, incorporando o carbono incorporado nas coisas utilizadas, em vez de o libertar na atmosfera. Construir, e não queimar, é o nome do jogo nas próximas décadas.
É possível adiante e imaginar uma Era na qual a humanidade substituirá a maior parte dos seus combustíveis fósseis por alternativas renováveis. Provavelmente, ainda precisará de petróleo para alguns produtos, como o grafite nas baterias.
Se tudo correr bem, também terá esquemas acessíveis para capturar todas as emissões ainda não eliminadas. Se as decisões políticas tiverem algum bom senso, haverá muitas novas centrais nucleares, porque o urânio está muito mais acima na escala da densidade energética em comparação a quase todo o resto, e transporte rodoviário eletrificado.
Haverá instalado cabos elétricos submarinos para criar uma rede internacional. Desse modo, os países com muito sol e vento ajudarão a fornecer energia aos restantes.
Serão acessíveis combustíveis verdes para os navios e talvez até para os jatos. Desde logo, sonha-se, ou melhor, planeja-se fertilizantes verdes para os nossos campos.
Nessa idealização, o mundo será um lugar mais saudável e produtivo, com menos mortes causadas pela poluição, porque se extrairá muito menos combustíveis fósseis em lugar do feito hoje. A pegada ecológica terá diminuído genuinamente em todo o mundo.
Embora a energia renovável seja consideravelmente menos densa diante dos combustíveis fósseis, ela é praticamente infinita. É preciso mais painéis e turbinas para captar energia do sol e do vento, mas se os humanos captarem energia suficiente, os custos de eletricidade poderão cair drasticamente.
Se as emissões de carbono estagnam e diminuem, o mundo também poderá tornar-se menos limitado pela energia e ainda mais rico e produtivo. É uma visão sedutora.
Ela envolverá um grande esforço e muito tempo e dinheiro para chegar lá. Não existe um único interruptor possível de se acionar para transformar todo o Mundo Material em energia renovável. Serão necessárias quantidades extraordinárias de matérias-primas.
Talvez o aspecto mais perturbador desta visão do futuro: muitos de nós, talvez a maioria de nós nunca conseguirá experimentá-la.
Isso, segundo Ed Conway, leva a três riscos à frente. O primeiro é as pessoas se desesperarem e desistirem. Serão rendimentos comparativamente mais fracos diante dos atuais para salvar o planeta.
O segundo risco é este esforço para construir o destino para o zero líquido é bloqueado pela resistência política e pela apatia pública. Por exemplo, não se alcançará o zero líquido se houver um déficit duradouro de lítio ou cobre. Significa precisar de mais pessoas com mais engenho para pensar em formas de obter esses minerais.
O terceiro risco é as bases geopolíticas sobre as quais o Mundo Material é construído se desintegrarem. O mundo tal como o conhecido hoje, inclusive todos os círculos virtuosos para os preços terem caído ano após ano, depende das interligações globais.
Quando as cadeias de abastecimento funcionam e os materiais podem fluir livremente de uma parte do mundo para outra, dificilmente parece importar de onde vêm as coisas, onde são feitas ou como são feitas. Quando essas cadeias de abastecimento entram em colapso, diante as guerras ou as batalhas comerciais, todas as apostas são canceladas.
Pior, dado o grau de complexidade no fabrico de produtos hoje ser muito maior diante de qualquer geração anterior, o impacto potencial de países de todo o mundo escolherem a autarquia – tentando sobreviver sem importações – destruirá este sonho!
Uma coisa é sofrer um curto-circuito no seu encanamento financeiro, outra totalmente diferente é sofrer um curto-circuito no seu sistema de energia. No entanto, a energia é apenas uma parte disso, pois a crise suscita questões sobre toda a estrutura da economia global, caso já não se possa confiar nas cadeias de abastecimento.
Por exemplo, alcançar a “soberania dos semicondutores” exige um levantamento de toda a cadeia de abastecimento de chips de silício. Talvez, no devido tempo, esses mapas possam, juntamente com análises de fluxo de materiais, mapeados pelo uso de substâncias, fornecer um contraponto às estatísticas do PIB, revelando o poder da dependência e da cooperação.
Quando se examina esses mapas rudimentares do Mundo Material, observa-se uma teia de conexões e dependências tão complexas a ponto de parecer quase impossível desemaranhar. Este mundo surpreendente de interconexões via todo o alto mar permitiu se considerar como garantidos os alicerces da civilização – tudo, desde os materiais até à energia.
Da mesma forma como se aumenta a exploração do cobre no Chile e e do ferro na Austrália, aumentam-se os fluxos de comércio. Um único navio porta-containers de hoje pode transportar mais carga se comparado a toda a frota mercante inglesa no século XVI.
Em síntese, segundo Conway (2023), “o Mundo Material continua a ser um lugar maravilhoso. Hoje, temos nanotecnologia em cada um dos nossos bolsos precisamente por causa da colaboração e da competição entre cientistas e fabricantes em todo o mundo”.
São necessários apenas alguns meses para inventar e fabricar medicamentos para enfrentar pandemias, como a de Covid19, devido a estas redes de poder intelectual e de ciência material do tamanho de um planeta. O Mundo Material é a base das nossas vidas hoje, poupando a maioria de nós do trabalho árduo e penoso dos nossos antepassados.
Estes saltos surpreendentes (e na maior parte não apreciados) ocorreram porque foram utilizados enormes quantidades de energia, metais e produtos químicos para industrializar a agricultura e a mineração.
Todos nós ficamos desconectados das indústrias primárias das quais todos dependemos para a nossa sobrevivência. Talvez esta seja simplesmente a contrapartida do capitalismo moderno. É necessário o reconectar com os fundamentos do Mundo Material.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.