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Suicídio forjado: Norberto Nehring (20/9/1940 – 25/4/1970). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tiburcio.

Suicídio forjado: Norberto Nehring (20/9/1940 – 25/4/1970). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tiburcio.

“Ia” — a amada de Norberto, é Maria Lygia Quartin de Moraes, estava em Paris. Casaram-se em 1963. Marta — a adorada filha, então com 6 anos. Nice Monteiro Carneiro Nehring — mãe de Norberto. (Nesta data, há 53 anos, a ditadura cometia crimes bárbaros até hoje impunes).

“Ia e Marta, minhas adoradas!

Cheguei no sábado aqui na terra e, tristeza, já estou frito. Frito!

Logo de cara dei com um cara conhecido da Pfizer, que arregalou os olhos. Isto deixou-me nervoso e também por um excesso de confiança terminei por usar meu nome na portaria do hotel… Que besteira! Custou-me a vida. Imediatamente
segui para Niterói, mas eles não desgrudaram mais de mim. Fiz o possível, mas são sempre muitos à distância de 4 ou 5 ao meu lado. No domingo já estava eu em Campinas, depois Vitória e Belo Horizonte. E sempre eles, crendo que sou um grande líder, preparando emboscadas pelo caminho, a fim de surpreender os meus salvadores. Pensavam que também viajei para buscar gente conhecida. Ora bolas!!! Fui viajando apenas para ver o que fazer, já que enquanto viajava eles seguiam sem me perder. Inicialmente também viajei para ver se estavam me seguindo mesmo, e com isso, o cerco foi estreitando. Depois de tudo, decidi vir para São Paulo simplesmente porque tanto me fazia vir para cá como ir para qualquer outro lugar. Recuso-me a procurar a família; não vou envolver ninguém nisto neste momento e nesta situação.

Não fui preso até agora — procuraram desmoralizar-me. Querem saber para que vim aqui (sabe-se lá o que imaginam) ou quem vou procurar. Como se tivesse quem procurar!!!

Minhas adoradas, perdoem-me por isto — quer dizer, por morrer ou ir preso (e eventualmente morrer lá). Nesta vida a senda é estreita. Pesa para morrer.

Estejam seguras que, qualquer que seja meu destino, amei-as como poucos puderam gostar tanto da esposa e da filha.

Da Martinha tenho três desenhos e guardo comigo teu isqueiro, Ia amada.

Com você tive os melhores momentos de minha vida. Sete anos de casamento, altíssima e (borrado) grande felicidade. Mas, enfim,….., sensibilidade e sentimento de indignação que nos leva ao protesto.

Por favor, Ia querida, não volte para o Brasil; por bons tempos fique aí na Europa.

Não tenho certeza de que vocês receberão esta carta, mas pode ser que eles publiquem algo.

Tchau, Norberto.

(segue)

Por favor, entreguem esta carta a Nice Monteiro Carneiro Nehring
19ª Junta Justiça do Trabalho
São Paulo, Capital”

Norberto — Norberto Nehring, economista, 29 anos, paulista, militante da ALN.

Fora preso em 7 de janeiro de 1969 no Dops. Ao ser libertado, foi para Cuba.

Um ano depois, 18 de abril de 1970, desembarcou no Galeão com dois companheiros e uma mala de fundo falso com dinheiro da organização, que acabou desaparecendo.

“Ia” — a amada de Norberto, é Maria Lygia Quartin de Moraes, estava em Paris.

Casaram-se em 1963.

Marta — a adorada filha, então com 6 anos.

Nice Monteiro Carneiro Nehring — mãe de Norberto.

A versão oficial está em um inquérito policial a cargo do delegado Ary Casagrande: ele teria sido encontrado morto no dia 25 de abril de 1970, no quarto 21 do Hotel Pirajá, na Alameda Nothmann, 949, Centro de São Paulo, enforcado com
uma gravata. Trazia uma identidade com o nome Ernest Snell Burmann. Como entre seus pertences havia um bilhete assinado Norberto e endereçado a Nice Monteiro Carneiro Nehring, três meses depois do suposto suicídio ela foi chamada à Delegacia, onde fez o reconhecimento do filho pela foto da identidade de Ernest Snell Burmann e pela sua letra.

Estranhamente, a perícia de local, absolutamente indispensável, não foi solicitada.

A família de Nehring requereu a exumação do corpo e a autópsia, mas não teve o pedido concedido. Ele foi enterrado com nome falso no Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. Posteriormente, ainda no mesmo ano de sua morte, a família conseguiu trasladar seus restos mortais para um jazigo familiar.

Neddy Quartin de Moraes, pai de Maria Lygia, em meados de 1970, foi chamado à 3ª Delegacia de Polícia para retirar os pertences de Norberto. Pediu para ver as fotos da Polícia Técnica referentes à perícia de local. Foi informado de que
não existiam. Dali foi ao Hotel Pirajá e conversou com o porteiro que trabalhava há muito tempo no estabelecimento: este disse-lhe que não acontecera nenhum suicídio no local, um conhecido bordel freqüentado por policiais e localizado
próximo ao Dops.

No Inquérito Policial, há duas referências diferentes para a causa mortis. Na requisição para o IML, a causa mortis é “asfixia mecânica por afogamento”. O laudo necroscópico, jamais encontrado, citado no relatório do delegado Casagrande, dá como causa da morte “asfixia mecânica por enforcamento”, e como instrumento uma gravata de fantasia.

“No Brasil: nunca mais”, dois presos políticos denunciam a morte de Norberto Nehring.

Diógenes Arruda Câmara denuncia as atrocidades cometidas pelo governo militar e, dentre os nomes de militantes mortos sob tortura, cita Norberto Nehring.

Paulo de Tarso Venceslau, contemporâneo de Nehring na Faculdade de Ciências Econômicas e Administração da USP e preso desde setembro de 1969, declarou que, em fins de abril ou início de maio de 1970, era voz corrente entre os
policiais que o Dops paulista havia prendido o economista Norberto Nehring e que o teria eliminado em um dos hotéis da “boca do lixo”.

Ele teria sido preso em um aeroporto após sua chegada ao Brasil, provavelmente vindo da antiga Tchecoslováquia.

Maria Lygia recebeu em Paris uma carta de Joaquim Câmara Ferreira, informando que presos políticos viram um corpo ser retirado da prisão e que era o de Norberto Nehring.

A Anistia Internacional denunciou sua morte: Norberto Nehring — “died under tortures” (Norberto Nehring – morto sob torturas), São Paulo, 24-4-70. Source: correspondance received by Amnesty Internacional.

Documento do Ciex encontrado no Dops/SP contém um extenso relatório de um informante infiltrado em Cuba, dando conta dos militantes que estiveram naquele país, no qual cita Nehring, e revela que a entrada deles no Brasil era conhecida e, até em muitos casos, controlada.

Na Comissão Especial, o relator Paulo Gonet Branco considerou precárias as provas presentes nos autos: os dois depoimentos de presos políticos; o depoimento do sogro; a carta de Joaquim Câmara Ferreira, citada, mas não incorporada ao
processo; a ausência de perícia de local; a demora de três meses para que fosse comunicado à mãe do morto o seu falecimento, apesar de o bilhete do “suicida”, que teria sido encontrado ao lado do corpo, estar endereçado a ela.

No entanto, o relator fez as seguintes considerações:

O bilhete tido como sendo de Norberto revela estado de aflição. Fala em sua tristeza e seu autor se diz “frito”, a significar que pressentia a captura. Nele conta que viajou para Niterói, Campos, Vitória, Belo Horizonte, terminando em
São Paulo, e sentia a perseguição constante e mais próxima. O bilhete indica alguém em estado de angústia; não se entremostra, todavia, uma nota típica de suicida, mas, antes, um registro de alguém que tem a consciência de que
corre risco de vida.

(…) Há depoimento indicando que não era da personalidade do falecido a propensão para o suicídio.

(…) A falta de documentação sobre o alegado suicídio, acrescida da contradição no indicar a causa mortis, reduz o poder de convencimento da tese do autoenforcamento em um hotel em São Paulo.

A conclusão do parecer de Paulo Gonet Branco:

(…) Mesmo sem evidências irrefutáveis, acredito que o caso merece ser enquadrado na Lei 9.140/95.

A Comissão Especial entendeu que aquela não era uma carta de um suicida e reconheceu a responsabilidade do Estado na morte de Norberto Nehring.

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