Quem é essa mulher… Zuleika Angel Jones (5/6/1923 – 14/4/1976). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.
Zuzu Angel tinha a coragem das mães vilipendiadas: “Srs. passageiros, dentro de poucos minutos passaremos no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, Brasil, país onde se torturam e matam jovens estudantes (…)”. Ela tinha tomado o microfone de comunicação do Boeing e dito essa mensagem, em plena ditadura militar.
Zuzu Angel era uma estilista famosa no país e no exterior. Tornou-se uma áspera e cabal opositora do regime desde junho de 1971, quando seu filho, Stuart Angel Jones, foi preso, torturado e morto por agentes de segurança da Aeronáutica na própria base aérea do Galeão. Sua morte não foi admitida, seu corpo foi ocultado qual um desaparecido político.
Os órgãos de segurança não sabiam como calar essa mulher, possuída de indignação sem tamanho, que se lançou em uma campanha sem tréguas usando formas de denúncia diferentes das habitualmente utilizadas pelos familiares dos militantes e dos defensores dos direitos humanos.
Usava de seu prestígio para fazer chegar sua denúncia candente e apaixonada a personalidades do mundo político, diplomático, cultural, das comunicações, de vários países.
Zuzu Angel chegou a ser alertada por militares descontentes com o governo de que os órgãos de repressão poderiam usar contra ela o “Código Doze”: atentado simulando acidente ou assalto.
A comoção sem precedentes provocada pelos assassinatos oficiais após torturas de Wladimir Herzog, em outubro de 1975, e de Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976, que resultou na demissão do comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Neto, levou a um recuo os torturadores.
Instalou-se uma luta interna dentro do sistema para quebrar a autonomia dos órgãos repressivos. Os guerrilheiros, urbanos e rurais, as organizações e os partidos oposicionistas estavam esfacelados. No Rio de Janeiro, principalmente, os agentes da repressão, postos na defensiva, passaram a praticar atentados a redações, bancas de jornais, escritórios de advogados, a ações como o seqüestro de dom Adriano Hipólito, às cartas-bombas, até a tresloucada tentativa de provocar a morte de centenas de pessoas que assistiam a um show de 1° de maio no Riocentro, em 1981.
Não era possível prender Zuzu Angel e forjar seu “suicídio” — teria uma repercussão impensável. Sua morte teria de parecer um acidente. Naquela noite, início da madrugada, ela saiu da festa naturalmente cansada, depois de um dia atribulado. Tomou seu Karmann Ghia e foi para casa. Pouco ou nada bebia. Dirigia cuidadosamente. Há várias versões para o “acidente”. Para a imprensa, o desastre teria ocorrido às 2h15 do dia 14 de abril de 1976, na Estrada Lagoa-Barra, à saída do Túnel Dois Irmãos (hoje rebatizado com o nome de Túnel Zuzu Angel).
O Corpo de Bombeiros relata que foi acionado às 2h40. O inquérito policial dá como ocorrido às 3h. Como se verá, os horários divergentes formam contradições de menor importância frente à magnitude da farsa que foi montada. Segundo o laudo pericial assinado por Elson Rangel, o carro de Zuzu Angel vinha na pista certa, a uma velocidade de cerca de 100 km/h; ao se aproximar do Viaduto Mestre Manuel, inexplicavelmente, teria sofrido um desvio à esquerda, batendo no meio-fio do canteiro central, em seguida teria se desgovernado, derrapado fortemente para a direita, por 28 metros, batido no meio-fio à direita e teria sofrido novo desvio de trajetória, sempre sem reações de defesa da motorista, e percorrido mais 9 metros até o choque da parte esquerda da frente do carro com a mureta do viaduto e o capotamento, sucessivas vezes, até a parada, 6,40 metros abaixo, na Estrada da Gávea.
Um laudo feito sob medida para o inquérito policial propôs o arquivamento, por não ter o que investigar, já que o acidente teria sido provocado pelo sono.
Na conclusão do inquérito, conduzido por Dil Gerson (…) No afã de descartar qualquer suspeita, o delegado chega ao ponto de descrever o que teria se passado com ela. Apesar das suspeitas e da incredulidade, não houve como desmontar a minuciosa farsa elaborada para encobrir a verdade. A própria família de Zuzu Angel rendeu-se à falta de testemunhas, provas sem indícios que pudessem contrapor à versão oficial.
Primeira votação
Na primeira vez que o processo de Zuzu Angel apontou na Comissão Especial, foi indeferido por 5 x 2 votos, de Nilmário Miranda e Suzana Keniger Lisbôa. O relator Luis Francisco da Silva Carvalho Filho reconheceu que havia um clima de ameaças e suspeição e que Zuzu Angel incomodava os órgãos repressivos, mas não viu provas, mesmo indiciárias, suficientes para concluir pelo atentado político, e propôs o indeferimento em agosto de 1997.
A péssima repercussão do indeferimento, com larga difusão dos protestos de Nilmário Miranda e Suzana Keniger Lisbôa, mas, sobretudo, da requerente Hildegard Angel, acabou propiciando o surgimento da verdade.
O advogado Luiz Roberto Nascimento Silva, representando a família, apresentou recurso à CE com três elementos novos:
1 – Declaração do advogado Carlos Machado Medeiros de que foi testemunha do atentado contra Zuzu Angel.
2 – Declaração da psiquiatra Germana de Lamare de que, dois dias antes de sua morte, Zuzu comunicou-lhe que estava ameaçada e apavorada.
3 – Carta dirigida a Hildegard Angel pelo advogado paraibano, Marcos Pires, relatando que ouviu o barulho do acidente de seu apartamento, e, junto com dois amigos, chegou ao local do acidente em três minutos, sendo impedido por policiais de várias viaturas de se aproximar, donde lhe veio a convicção de que a morte de Zuzu não fora acidental. Recuo da testemunha Carlos Machado Medeiros, advogado influente em Brasília, é filho do ex-ministro Carlos Medeiros, da Justiça, do governo Castelo Branco, primeiro presidente após o Golpe Militar de 1964.
Em sua declaração à CE, datada de (…) de novembro de 1997, afirma que no dia 14 de abril de 1976 presenciou “dois carros abalroarem o Karmann Ghia azul de uma pessoa que, logo depois, na manhã seguinte, constatou ser a estilista Zuzu Angel”. Disse que este depoimento foi comunicado apenas a alguns amigos, “uma vez que não houve possibilidade de se recuperar este período tenebroso e dramático da vida brasileira”. Dois desses amigos, em declarações enviadas à CE, Erasmo Martins Pedro (exvice-governador do Rio) e Paulo Roberto Valpassos e um terceiro, o deputado federal José Luiz Clerot, em depoimento à CE, confirmaram que, desde 1976, ouviram de Carlos Machado Medeiros ter ele presenciado dois veículos abalroarem o carro de Zuzu Angel. Luis Francisco da Silva Carvalho Filho resolveu tomar pessoalmente o depoimento de Carlos Machado Medeiros para detalhar a dinâmica do abalroamento, as distâncias, a descrição dos veículos, o porquê de não ter revelado antes o que viu. Só três dias antes do depoimento, Luis Francisco da Silva Carvalho Filho foi informado de que Carlos Machado Medeiros sofrera um grave acidente, em 1994, e que dele trazia seqüelas. Acompanhado do diligente advogado Luiz Roberto Nascimento Silva e da ad[1]vogada Elizabeth Sussekind, Luis Francisco da Silva Carvalho Filho constatou a delicadeza do estado de saúde de Carlos Machado Medeiros, que afirmou não se lembrar de nada referente à morte de Zuzu Angel! Apesar da respeitabilidade dos três amigos que confirmaram ter ele presenciado o atentado que resultou na morte de Zuzu Angel, na prática, com este depoimento, a testemunha invalidou a declaração por ele assinada três meses antes.
Novos depoimentos
A Comissão Especial esteve a ponto de arquivar o recurso, em meio a uma acalorada discussão, mas, por fim, resolveu tomar novos depoimentos, no dia 9 de fevereiro de 1998. Em 12 de fevereiro, Nilmário Miranda, representando o relator, foi à Paraíba tomar o depoimento de Marcos Pires, na presença do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de João Pessoa, Júlio Rafel, do presidente da OAB-PB, e da vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos. Marcos Pires declarou que viu o carro de Zuzu Angel ser perseguido e abalroado. Estava à janela do seu apartamento no Edifício Tiberius quando viu um carro, em alta velocidade, ultrapassar pela esquerda e forçar o carro, que depois soube ser de Zuzu Angel, a sair da estrada, tombando na Estrada da Gávea. Marcos Pires gritou para seus dois amigos, Humberto Rabelo e Josaphat Soares, alertando para o que acabava de presenciar. Imediatamente, desceram e correram até o local onde o carro caíra, para oferecer socorro. Calcularam em três minutos o tempo gasto. Surpreendentemente, encontraram um verdadeiro aparato policial e uma perua que lhes pareceu ser da imprensa, com uma antena alta na traseira. Foram impedidos de se aproximar do carro acidentado.
No dia seguinte, ao ler os jornais, teve a convicção de que Zuzu fora assassinada. Nilmário Miranda voltou preocupado. O depoimento de Marcos Pires colocava completamente em xeque o laudo pericial. Com base em estudos sobre o laudo oficial, por Celso Nenevê, que não é perito em acidentes de trânsito, Nilmário Miranda acreditava que o carro de Zuzu fora fechado pela direita, obrigando-o a se chocar com a proteção do canteiro central, e daí todo o resto. O depoimento de Marcos Pires mudara tudo. 643 sem partido repressão generalizada Humberto Rabello foi taxativo: ele apenas ouviu. Marcos Pires viu e ouviu. Muito seguro, Marcos Pires repetiu esse depoimento a Luis Francisco da Silva Carvalho Filho. Explicou por que, na carta à Hildegard Angel, não falou que viu, só que ouviu: a carta não era uma declaração oficial para fins jurídicos e quis poupar, à filha de Zuzu, o inteiro teor do que presenciou. No dia 12 de fevereiro, Mário Magalhães, repórter da Folha de S.Paulo, no Rio, reconstituiu o trajeto entre a portaria do Edifício Tiberius e o local onde o carro caiu. Os 317 passos consumiram 3 minutos e 17 segundos. Portanto, os três minutos de Marcos Pires não foram força de expressão. Em 23 de fevereiro, a Folha publica outra “bomba” descoberta por Márcio Ma[1]galhães, que copiara diretamente dos negativos do Instituto Carlos Éboli foto da perícia local: a foto mostra não haver no asfalto nenhuma marca da derrapagem de 28 metros, registrada no laudo pericial. Mário Magalhães mostrou esta foto ao perito Elmo Rangel. “É estranho. Não tem”, foi tudo o que respondeu, e teve ainda o desplante de afirmar: “Não é preciso ter foto, tenho fé pública (…)”. O mesmo repórter apurou que Elson Rangel, em O Globo, de 15 de abril de 1976, afirmou que “provavelmente, Zuzu Angel tentou desviar-se de algum obstáculo à sua frente — talvez uma pessoa que atravessara correndo a pista — ou levou alguma fechada de algum outro carro”. O perito ainda não tinha combinado com o delegado a falsificação para ajustar o laudo à versão oficial, baseado no sono e na ausência de reações de defesa. Laudo técnico A pá de cal na versão oficial veio com o laudo técnico, feito por dois especialistas, gratuitamente, a pedido de Luis Francisco da Silva Carvalho Filho: Valdir Florenzo e Raphael Martello Filho. De pronto, Florenzo e Martello declararam que o laudo da versão oficial é inverossímil, independentemente dos vestígios no local ou no veículo. “Primeiro, porque um veículo jamais mudaria de direção abruptamente, única e tão-somente por conta do impacto contra o meio-fio, o qual seria galgado facil[1]mente (…)”. Ou seja, o carro, ao se chocar com o meio-fio, se projetaria dali, e não a 9 metros depois de bater na mureta do Viaduto Mestre Manuel. Ainda que se desviasse — apenas para efeito de raciocínio — para que o carro chocasse seu lado dianteiro esquerdo contra a mureta do viaduto, teria de ir com as rodas do lado direito no ar. Segundo Florenzo e Martello, o que ocorreu foi o que Marcos Pires descreveu: o Karmann Ghia desviou inopinadamente à direita, chocou-se com a mureta e capotou uma única vez. Eles crêem que os ferimentos no lado esquerdo da face e do crânio de Zuzu Angel vieram do choque de sua cabeça com o asfalto quando o carro caiu. 644 dos filhos deste solo n. miranda / c. tibúrcio A fratura do perônio direito “é típica da compressão transmitida pelo pedal do freio no momento do impacto”, prova de que ele freou, derrubando a “ausência de reação de defesa” provocada pelo sono. Teria de haver marca dos pneus no asfalto, se fosse verdadeira a versão oficial. Fatos constantes no laudo de Celso Nenevê, feito a pedido da CE na primeira vez em que o processo foi apreciado, mostram marcas de atritagem nos dois pneus dianteiros e deformações na folha da porta esquerda — que podem ter sido provocadas pelo abalroamento. Inquérito viciado O inquérito policial deveria apurar a hipótese de atentado, mas trabalhou na direção oposta. Quis provar que o acidente foi provocado por embriaguez ou sono. A conclusão do inquérito: Admitimos que Zuleika Angel Jones, certamente, cansada como estava, como de costume, pressentiu que ia dormir. Quem sabe tenha ido mais longe, suspeitou que não resistiria ao sono por mais tempo. Talvez tenha preferido, contrariando seu hábito, imprimir maior velocidade ao veículo para chegar rápido a casa e descansar. Infelizmente, traída pela fadiga, surpreendida, pegou no sono. Acreditamos que, por ocasião da primeira atritagem do veículo, Zuzu Angel foi atirada para o lado, perdendo inteiramente o domínio do mesmo, podendo até ter acordado, mas em estado de confusão mental, a que já aludimos, não conseguindo se aperceber da situação em que se encontrava. Única explicação plausível para a ausência de reação de defesa.
Desnecessário se torna no nosso entender alinhar novos argumentos para provar que não houve crime no acidente que vitimou Zuzu Angel, vez que as provas alicerçadas nos laudos periciais e nos testemunhos são decisivas e irrefutáveis. Na verdade, o caso tinha passado por uma revisão recente. O laudo comprovou que não havia álcool no sangue de Zuzu Angel. A única testemunha arrolada no inquérito que não estava na festa, o vigia de um prédio que, a distância, percebeu o acidente, ao depor, voltou atrás e disse que dormiu toda a noite.
Nova votação
Luis Francisco da Silva Carvalho Filho chegou à conclusão de que os erros crassos, grosseiros, do laudo pericial da versão oficial não foram erros técnicos. Foram erros propositais, erros para ocultar evidências criminosas. “Fora da perspectiva política não há explicação razoável para a falsidade da versão oficial”, e “minha convicção íntima é a de atentado político. Não estava detida em estabelecimento prisional, contudo, a rede de indícios demonstra que seu veículo foi interceptado e ela, em conseqüência, eliminada. Para tanto, Zuzu Angel estava na esfera de domínio dos autores do delito”. 645 sem partido repressão generalizada Suzana Keniger Lisbôa reafirmou seu voto anterior, pelo acolhimento. Nilmário Miranda chamou a atenção para a presença de uma pessoa com antena alta na parte traseira, que Marcos Pires pensou ser da imprensa, podendo ser o carro do DOI-Codi, e que a presença imediata de policiais, em um tempo impossível, é evidência de complô.
O general Oswaldo Gomes julgou absurda a hipótese de considerar dependência policial ou assemelhada uma pessoa dirigindo seu próprio carro, sozinha, em velocidade. Votou contra. Como ele, votaram Paulo Gonet Branco, repetindo suas posições anteriores, elogiando o parecer do relator. João Grandino, assim como Gonet, admitiu até mesmo a hipótese de atentado, mas não viu como enquadrar este caso nos parâmetros da Lei 9.140/95: “Esta lei não permite que se considere possível o abalroamento como dependência policial ou assemelhada”. Estabelecido o empate, 3 x 3 votos, coube a Miguel Reale o voto de Minerva. Realçou que o amassamento da porta esquerda apontara para a hipótese do abalroamento pela esquerda. Que houve um plano, uma arquitetura, algo adre[1]de preparado, e que Zuzu Angel tornou-se uma cidadã que não tinha como se defender e não podia conduzir livremente seu carro, e assim configurou-se uma situação de domínio.
Homenagem
Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho: Só queria embalar meu filho que mora na escuridão do mar? Quem é essa mulher que canta sempre esse lamento: Só queria lembrar o tormento que fez o meu filho suspirar? Quem é essa mulher que canta sempre o mesmo arranjo: Só queria agasalhar meu anjo e deixar seu corpo descansar? Quem é essa mulher que canta como dobra um sino: Queria cantar o meu menino que ele já não pode mais cantar?
Chico Buarque de Holanda “resgata por metáforas e alusões a odisséia da figurinista Zuzu Angel, que protestou contra o governo militar pelo desaparecimento do filho torturado e acabou morta num estranho desastre de automóvel” (Tárik de Souza, na apresentação do disco Chico 50 anos – O político. Faixa 12 “Angélica”: Miltinho – Chico Buarque, 1981)