Uma história infame
Além do governo dos Estados Unidos, Assange e o Wikileaks são também odiados pela indústria internacional de vigilância em massa. Ele denunciou esse lucrativo, bilionário negócio e comprovou que se trata de uma indústria que vende equipamentos tanto a ditadores como a democracias, para interceptar as comunicações de populações inteiras
O caso Julien Assange merece um capítulo adicional da História Universal da Infâmia, pois nele estão presentes a vilania, a falta de escrúpulos e a traição de governos, homens e algumas mulheres. E é difícil não olhar para Assange como uma vítima disso tudo. Naquele livro, que muitos consideram sua obra-prima, Jorge Luiz Borges recria, através de personagens intrigantes e também infames, o que tem sido o pior tipo de comportamento humano pelo mundo afora.
Responsável pelo que os jornalistas classificam como o furo do século, qual seja a revelação dos crimes estadunidenses nas guerras do oriente, Assange hoje, depois de uma prisão onde teria sido torturado e quase morto, e um asilo de sete anos na embaixada do Equador em Londres, enfrenta uma extradição para os Estados Unidos, onde poderá ser condenado a 175 anos de prisão. O que equivale a uma condenação perpétua. E arrisca-se também à pena de morte.
A principal fonte de Assange, que lhe passou as informações e as provas, num total de 750 mil documentos, também foi condenada a uma pena de 35 anos de prisão, comutados para sete anos pelo presidente Barack Obama. Trata-se do soldado transexual Bradley Manning, que hoje se chama Chelsea Manning e encontra-se em liberdade. As condições da sua prisão na base militar de Quantico foram denunciadas pela Amnistia Internacional como cruéis e desumanas. Manning também teria sido submetida a torturas durante toda a sua detenção. É de se imaginar o que Chelsea, transgênero, deve ter passado dentro do sistema prisional americano.
Outro inimigo
Além do governo dos Estados Unidos, Assange e o Wikileaks são também odiados pela indústria internacional de vigilância em massa. Ele denunciou esse lucrativo, bilionário negócio e comprovou que se trata de uma indústria que vende equipamentos tanto a ditadores como a democracias, para interceptar as comunicações de populações inteiras. Há empresas que vendem equipamentos capazes de registrar a localização de todos os telefones celulares numa cidade e software com capacidade de infectar com vírus todos os utilizadores de Facebook, por exemplo, ou utilizadores de smartphone de um sector inteiro da população. E há quem venda vírus informáticos ou outro software malicioso para ser instalado em computadores específicos, tecnologia de rastreamento por GPS e material para interceptar ligações de Internet.
Os advogados de Assange foram capazes de provar o cerceamento do seu direito de defesa porque, afirmam, não tiveram tempo suficiente para analisar as acusações para o julgamento que teve claras motivações políticas. Denunciaram perseguição por parte do governo dos Estados Unidos motivada pelo facto de o WikiLeaks ter revelado evidências de crimes de guerra e de violação dos direitos humanos. Os Estados Unidos processaram Assange por espionagem e outros crimes mais graves e o governo dos EUA fundamentou seu pedido de extradição em um crime menor, qual seja tentar capturar ilicitamente o código de acesso a um computador governamental. Foi uma estratégia para conduzir um processo de mais fácil tramitação. Fundamentar a denúncia e obter a condenação por um furo jornalístico desencadearia uma corrente incontrolável de protestos e de oposição da imprensa em geral.
Durante o governo Obama, o então procurador-geral, Eric Holder, decidiu por não acusar Assange para não abrir um precedente. Em sua opinião, acusar alguém que se diz jornalista de espionagem por ter divulgado informação verdadeira “desencadearia protestos e despertaria muitos fantasmas”. A perseguição do governo americano ao WikiLeaks foi considerada em vários círculos profissionais como um ataque ao jornalismo com um todo.
Maus tratos
A extradição de Assange para os Estados Unidos representa graves violações dos direitos humanos, incluindo condições de detenção equivalentes a tortura e outros tipos de maus tratos. Nils Melzer, representante da ONU que visitou Assange durante sua prisão em Belmarsh, disse à saída que ele apresentava sinais de que tinha sofrido tortura.
O martírio do fundador do WikiLeaks começou com uma denúncia de abuso sexual na Suécia, promovida por duas mulheres com quem ele tinha tido um caso simultâneo sem o conhecimento delas. Quando ambas souberam,teriam decidido vingar-se por terem sido enganadas. Este caso acabou por prescrever mas foi pedida a sua reabertura. Processado pelos Estados Unidos, Assange pediu asilo ao Equador, de cujo presidente Rafael Correa havia se tornado amigo e refugiou-se na embaixada desse país em Londres, sem direito de sair à rua porque seria certamente preso. Com o fim do mandato de Correa e a chegada ao poder de Lenín Moreno, que apesar do nome é um político de direita alinhado aos interesses americanos, a polícia inglesa foi autorizada a entrar na embaixada e prender Assange.
Embora tenha afirmado, em 2016, que adorava o WikiLeaks, quando este divulgou documentos contra sua rival Hillary Clinton, Donald Trump disse depois que não conhecia o site nem Julian Assange, cujo destino, afirmou, não lhe interessaria. Durante sua campanha presidencial, Trump elogiou o Wikileaks mais de cem vezes, segundo a contagem da imprensa americana. Mas é bom lembrar que, segundo a contagem do Washington Post, Trump disse durante o seu mandato mais de seis mil mentiras e manteve a média de 9,89 mentiras por dia. Ainda segundo o jornal, só no dia da sua posse, no dia 20 de janeiro de 2017, disse um total de nove mentiras. “É um ritmo alucinante”, disse o Washington Post em editorial.
Se escrevesse hoje a sua História Universal da Infâmia, Borges certamente teria a sua disposição muitos novos e complexos personagens. Terrivelmente infames.
Poeta, articulista, jornalista e publicitário. Traballhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.
É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).