Soberania: no Estado ou no mercado?
Por trás do conflito entre o Governo e o Banco Central sobre a taxa de juros, encontra-se uma questão política da maior gravidade: o deslocamento da soberania do Estado para o Mercado. Recuperar o papel do Estado e do investimento público como eixo central do projeto de desenvolvimento é a utopia possível de ser alcançada…
Apesar de ter fracassado em toda parte, o neoliberalismo tornou-se ideologia dominante no Ocidente nas últimas décadas. Nos países periféricos, não promoveu o desenvolvimento e reconcentrou a renda. Uma super classe dominante, com níveis elevadíssimos de renda – multimilionários e bilionários – passou a dominar as políticas econômicas e a pautar a grande mídia em função de seus interesses. Trata-se de um problema global, não apenas brasileiro.
O eixo orientador da economia passou a ser o mercado financeiro. O capital financeiro, improdutivo porque não cria riqueza e emprego, serve de parâmetro para as políticas públicas baseadas na visão neoliberal do Estado Mínimo. O investimento industrial, que cria emprego e riqueza, arrefeceu, sufocado com as altas taxas de juros. O economista Prêmio Nobel Joseph Stiglitz, em declaração recente durante um Seminário organizado pelo BNDES em março deste ano, afirmou que a taxa de juros do Brasil equivale a uma pena de morte.
Acertou na mosca. É a morte do desenvolvimento com redução da escandalosa desigualdade social. É a reconcentração de renda nas mãos de 1% da população, talvez até menos. A taxa de juros no Brasil tornou-se um símbolo e um instrumento que remunera os banqueiros, os rentistas e os grandes investidores do mercado financeiro.
No mesmo Seminário citado acima, André Lara Resende, um dos criadores do Plano Real – citado por Antônio Martins em seu artigo publicado em Outras Palavras – referiu-se “à criação maciça de dinheiro pelos Estados, para salvar o sistema financeiro na crise de 2008 e na pandemia. Este movimento não provocou inflação – frisou ele – e desmente a velha teoria quantitativa da moeda, base teórica usada como pretexto pelos bancos centrais do Ocidente para elevar as taxas de juros”.
Mas essa política concentracionista de renda tem seus limites. O modelo econômico da democracia liberal entrou em crise ao relegar ao abandono grande parte da população que passa a rejeitar não apenas o neoliberalismo, mas a própria democracia que parece entrar em declínio em vários países do mundo ocidental. Os partidos e movimentos de extrema direita crescem, alimentados pelo desencanto das massas com a democracia liberal. Em seu último livro, Uma breve história da igualdade, o famoso economista francês Thomas Piketty alertou que o neoliberalismo está no fim. Segundo ele, ou a esquerda tira as consequências deste fato ou, como no século passado, os fascistas o farão.
Ao mesmo tempo, porém, vemos explodir em alguns países movimentos de massa contra decisões econômicas liberais, como na França, ou contra decisões autoritárias violando o Estado de Direito, como em Israel. São dois exemplos distintos de um fenômeno semelhante: o enfraquecimento da democracia liberal leva governantes a tomar decisões autoritárias, anti democráticas, em benefício de suas classes dominantes. Em ambos os países, isso foi o estopim da revolta.
No caso francês, a amplitude e a intensidade da mobilização popular indicam que não se trata apenas de protesto contra o projeto de Previdência do Governo. É ainda cedo para análises conclusivas, mas salta aos olhos que a profundidade e o alcance da mobilização têm como alvo o sistema político-econômico como um todo, e não apenas uma decisão baseada em argumentos contábeis e estatísticos que prejudicam direitos historicamente conquistados.
O declínio das democracias ocidentais foi impulsionado pelo populismo de direita e sua ideologia neofascista, a começar nos próprios EUA com o governo Trump e o movimento de extrema direita que ele patrocinou, com simulacros em vários países, como no Brasil de Bolsonaro. E a social democracia europeia, com sua pretensão de ser alternativa à democracia liberal e ao neofascismo, desmoronou, o que enfraqueceu a luta por uma democracia autêntica responsável por um desenvolvimento sustentável com redistribuição de renda e redução da desigualdade social.
Até alguns anos atrás, a esquerda brasileira considerava social democracia um palavrão, com base em alguns exemplos históricos de recusa à revolução. Mas o grande debate reforma x revolução se esgotou. A revolução saiu da ordem do dia, e a prioridade tornou-se lutar por reformas sociais e democráticas, em defesa da maioria da população. Em alguns países, como no Brasil, para derrotar o projeto neofascista foi necessário construir uma frente ampla, reunindo a esquerda, o centro, e a direita não fascista.
Diante desse quadro, o governo Lula, como governo de coalizão, é um espaço de disputa. As forças progressistas devem lutar para aprofundar a democracia defendendo os interesses da maioria, o que exige um combate sem trégua aos conservadores que apoiam a transferência da maioria dos recursos públicos ao mercado financeiro, para beneficiar banqueiros, rentistas e grandes investidores financeiros.
Embora alguns acreditem ser possível lutar pelo socialismo, que só eles enxergam no horizonte, a utopia hoje possível é lutar pelo aprofundamento de uma democracia de maior intensidade, uma democracia participativa. Ou, na linguagem da cientista política Chantal Mouffe, uma democracia radical, de caráter agonístico.
Por trás do conflito entre o Governo e o Banco Central sobre a taxa de juros, encontra-se uma questão política da maior gravidade: o deslocamento da soberania do Estado para o Mercado. Recuperar o papel do Estado e do investimento público como eixo central do projeto de desenvolvimento é a utopia possível de ser alcançada hoje.
Alguns chamam isso de socialismo. Mas, além da terminologia, é importante lembrar que esse desenvolvimento tem de assegurar a sustentabilidade ambiental, social, econômica e cultural, garantindo a defesa dos direitos dos setores oprimidos, como as mulheres, negros, homossexuais e povos indígenas. A democracia não pode ser restritiva, tem de ampliar os direitos de cidadania para todos. Uma economia de mercado cêntrica é o caminho mais curto para uma ditadura, da qual escapamos há pouco com muito sacrifício.
Liszt Vieira é integrante da Coordenação Política e Conselho Editorial do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da Associação Alternativa Terrazul. Foi Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92, secretário de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (2002) e presidente do Jardim Botânico fluminense (2003 a 2013). É sociólogo e professor aposentado pela PUC-RIO.