IMPUNIDADE DOS CRIMES DA DITADURA DE ’64 COMEÇA A SER QUEBRADA
Ex-delegado do DOPS no ES, criminoso confesso, Cláudio Guerra, é condenado por ocultação de cadáver na ditadura militar.
A ação penal ajuizada pelo MPF trata do desaparecimento de 12 militantes políticos: Ana Rosa Kucinski Silva, Armando Teixeira Frutuoso, David Capistrano da Costa, Eduardo Collier Filho, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, João Batista Rita, João Massena Melo, Joaquim Pires Cerveira, José Roman, Luís Inácio Maranhão Filho, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto e Wilson Silva.
Coube a iniciativa da denúncia ao procurador da República Guilherme Garcia Virgílio, do MPF em Campos dos Goytacazes, RJ, em julho de 2019.
A quem a RBMVJ (Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça) louva pela ação e deseja que sirva de exemplo a ser seguido por outros procuradores e advogados.
A Justiça Federal na sentença de 08 deste mês, reconheceu “a imprescritibilidade dos crimes sob apuração, aqui considerados como crimes contra a humanidade (ou de lesa-humanidade), em atenção à Constituição da República, às normas internacionais de direitos humanos e à jurisprudência sedimentada no âmbito dos sistemas global e interamericano de proteção aos direitos humanos”.
São imprescritíveis também as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar. (Súmula 647 do STJ).
O coronel Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro e de sua corja de nazifascistas, foi o primeiro agente militar da ditadura a ser declarado pela justiça civil como torturador; o coronel Paulo Malhâes, (meu sequestrador), foi o primeiro militar a ser assassinado como queima de arquivo, após começar a confessar crimes da ditadura à CNV; e Claudio Guerra, o primeiro agente do DOPS, a ser condenado pela Justiça Federal.
Sua pena de sete anos de prisão, em regime semiaberto, foi branda, não é exemplar. Diante dos exemplos da Justiça da Argentina soa como desprezível.
Esse facínora não é um demônio convertido, como rezadeiras de milagres gostariam que fosse. É um oportunista que traçou e executou, com habilidade e inteligência, um roteiro de viés diversionista, no qual se tornou o protagonista, para desviar outros caminhos de investigações, inobstante ter calculado mal o fim, forneceu trilhas úteis, e, quiçá, ainda inexploradas, e confessou seus delitos.
Assassino confesso e pistoleiro a mando. Torturador de presos comuns no ES. Convicto de que bandido deve ser morto.
Enrolou e desviou outros cursos de investigações, à medida que se auto atribuiu muita coisa e encobriu esteiras de outros. Entregou quem já estava morto ou “fichinha”. Não incomodou os seus, daí nada lhe aconteceu. Seu livro e depoimentos contém inverdades e contradições.
Graças a essa ação e condenação não alcançou o seu objetivo declarado: “Vi quando me chamam de assassino. Destilam ódio e, enquanto for assim, o objetivo de termos uma nova sociedade em que se perdoa os erros que foram cometidos. Teve vítimas fatais dos dois lados”, afirmou Guerra à Folha em 2019. (Negrito meu).
A sua condenação é a primeira dos agentes de Estado que cometeram as gravíssimas violações de DH na ditadura. Reside nesse pioneirismo a maior importância para o devir imediato da história.
A Justiça de Transição no Brasil foi por etapas, sem planejamento, conexão e continuidade.
1985 marcou o fim institucional da ditadura, 1988 a promulgação da Constituição, 1989 a primeira eleição direta pós ditadura, que elegeu Collor de Mello.
Em 1995 foi constituída a Comissão de Mortos e Desparecidos Políticos, em 2002 a Comissão de Anistia, ambas no governo FHC, e em 18 de novembro de 2011 foi criada a Comissão da Verdade pela presidenta Dilma.
A partir de 10 de dezembro de 2014 os relatórios da CNV foram entregues aos Poderes da República, sendo que as 29 recomendações, em quase sua totalidade, não foram implantadas até o presente pelo Estado brasileiro.
A política e a justiça brasileira andam por paradoxos.
Ao mesmo tempo em que ocorre a sentença do ex-delegado do DOPS, ocorreu também, em 31 de março deste ano, pela Marinha, a suspensão das anistias de marinheiros perseguidos e punidos durante a ditadura militar, em decorrência de uma portaria da ex-ministra Damares – a exterminadora dos direitos humanos.
Contudo, as prisões, os processos instaurados, as investigações em curso, da intentona de 8 de janeiro, vão criando as condições para termos a Justiça de transição de frente para trás ou concomitante.
O que nos cabe, militantes comprometidos com a luta pela justiça de transição, nesta conjuntura, é exigirmos do Estado a aplicação das recomendações da CNV, notadamente as de números 1, 2, 20, 26, 27 e 29.
Os movimentos Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça, nessa luta desde 2011, o Geração 68 Sempre na Luta, nascido em abril de 2021, a Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, lançado em julho de 2022, estarão certamente demandando aos poderes do Estado e apoiando na mesma pauta e sentido o Ministério de DH e Cidadania no monitoramento para implementação das Recomendações da CNV.
Em dezembro de 2022 várias entidades lançaram o Manifesto Pela Justiça de Transição, no qual declaramos: Se a justiça de transição não tivesse malogrado no Brasil, provavelmente não teríamos tido 2013, 2016 e 2018, não teríamos ainda hoje os que desconhecem o que foi a ditadura militar e pugnam por sua volta.
Bolsonaro e o Estado policial não são consequências da Comissão Nacional da Verdade, mas, exatamente do contrário, por não ter havido a criminalização dos agentes da ditadura que cometeram as graves violações dos direitos humanos. **
A inelegibilidade de Bolsonaro está precificada, todavia, isso apenas o afastará da política eleitoral por oito anos.
Seus crimes de genocídios aos yanomamis e às vítimas do covid-19, por consequência de sua política negacionista, embusteira e corrupta, bem como por ter sido mentor ideológico e político da intentona de 8 de janeiro, torna imperativo seu indiciamento e condenação, para que a democracia brasileira seja colocada num outro patamar, no qual golpes ou mesmo tentativas nunca mais se repitam.
Sua condenação e a de todos os militares envolvidos, levará seus heróis sanguinários, Ustra e Curió, todos juntos para o escaninho do esgoto da história.
Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Membro da Frente Brasil Popular do ES