Libération: ‘Boris Johnson, um mentiroso para a história´
Editorial do jornal Libération, por Sonia Delesalle-Stolper, editora-chefe adjunta do Serviço Mundial
Existe uma palavra inglesa, entitlement, cuja tradução para o francês não é simples. Sentimento de impunidade, arrogância, percepção de que tudo, mesmo o mais inverossímil, se deve a você. E que qualquer censura é um ataque incrível ao seu valor, à sua grandeza. Como sempre, uma palavra em inglês requer duas frases em francês para se compreender todas suas nuances. Por outro lado, será preciso apenas olhar para Boris Johnson. Este senso de entitlement, ele é a personificação perfeita disso. Este homem construiu sua vida em mentiras. Perdeu quatro empregos: um como jornalista por ter inventado citações, um como ministro por ter mentido sobre um caso extraconjugal, um como primeiro-ministro e outro como deputado por ter negado, apesar de múltiplas provas, festas e outras reuniões informais organizadas em 10 Downing Street durante a pandemia de Covid, em pleno confinamento, quando todas as reuniões foram proibidas para os mortais comuns.
Mas Boris Johnson nunca imaginou pertencer à linhagem dos comuns mortais. Daí sua raiva incandescente hoje, quando suas mentiras são oficialmente e publicamente expostas pelo Parlamento britânico. Finalmente! Ele, que não hesitou em enganar uma rainha envelhecida para suspender este famoso Parlamento e impor sua maior mentira, a de um maravilhoso Brexit que sete anos depois permanece uma casca vazia, usa sotaques trumpistas para falar de “simulacro de justiça” ou “assassinato político”.
Que piada!
Ele também se ofende que alguém possa contestar sua escolha de beneficiários de um título de Lord (basicamente, que permite que você tenha assento vitalício na câmara alta do Parlamento, sem ter sido eleito, e ter seu nome elegantemente precedido por “sir” ou “lady”). Qualquer primeiro-ministro demissionário pode apresentar uma lista de nomes para “honras”, ou seja, títulos. Em geral, a lista contém os nomes dos apoiadores mais próximos, financeiros ou políticos. Essas listas geralmente se assemelham a pequenos arranjos entre amigos. Mas Boris Johnson foi muito longe. Na sua lista, encontramos em particular Nadine Dorries, ex-ministra da Cultura, groupie absoluta de Johnson, cujas tiradas extravagantes nunca deixaram de surpreender os observadores, como quando ficou chocada pelo fato de o Reino Unido não poder mais ter eurodeputados depois de deixar a UE … Seu nome foi removido da lista.
Johnson também tentou dar um título nobre a seu pai, Stanley Johnson, e foi recusado. E então, entre as gotas, passou Charlotte Owen, uma mulher de 29 anos que se tornará assim a pessoa mais jovem da história a ter assento na Câmara dos Lordes. Ela foi, por pouco mais de um ano, uma das muitas conselheiras do primeiro-ministro Boris Johnson. A especulação avança rapidamente sobre a marca deixada por esta jovem desconhecida nos arquivos de Downing Street. Por fim, Kelly Jo Dodge também deve receber uma condecoração. Ela era a “cabeleireira parlamentar” de Boris Johnson. Por caridade, não comentaremos seu trabalho.
Boris Johnson não tem qualquer consciência política, já o provou há muito tempo. Ele não tem respeito por nada, nem pelas instituições que vem tentando minar dia após dia há anos. Nem por aqueles que o apoiam, próximos ou menos próximos, que ele deixa cair um após o outro. Ele não se vê. Talvez porque um olhar no espelho revelasse um campo de ruínas e, no meio, um grande vazio.
Ele fez mal ao Reino Unido, sua imagem, sua estatura e seu povo. Chegará o dia em que, sem dúvida, tudo isso será óbvio para os britânicos. Mas nesta quinta-feira, pela primeira vez, ficou oficialmente registrado, para a história, que Boris Johnson, ex-primeiro-ministro britânico, é um mentiroso em série. Já é um começo.
Tradução de César Locatelli