A América Latina e o Caribe podem salvar a Europa?
A atratividade da América Latina e do Caribe para a União Europeia é essencial para uma Europa em processo de reverter as dependências que a colocaram sob a influência da China, da Rússia e dos EUA. O potencial de inserção internacional do bloco é diretamente proporcional à necessidade da UE de reduzir suas fragilidades estruturais
Por Jorge Quindimil
A próxima Cúpula entre a União Europeia (UE) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) ocorrerá em Bruxelas nos dias 17 e 18 de julho, sob a presidência espanhola do Conselho da UE, com uma importância singular para ambas as regiões, mas especialmente para uma Europa vulnerável.
Vivemos em um mundo em transição para um novo modelo ainda incerto após a agressão russa à Ucrânia, com a reconsideração de alianças e o redesenho da globalização. A Europa está enfraquecida em vários aspectos políticos, econômicos e demográficos, após o Brexit e o caso da Hungria – a primeira vez na história em que a UE tem um membro que não é uma democracia –, devido à presença esmagadora de capital estrangeiro nas principais empresas europeias e ao declínio demográfico preocupante.
Será a nona cúpula entre os presidentes dos 33 países da América Latina e do Caribe (ALC) e os 27 Estados membros da União Europeia, desde a primeira realizada no Rio de Janeiro em 1999. Até 2015, as cúpulas eram realizadas periodicamente a cada dois ou três anos. Essa cúpula deveria ter ocorrido em outubro de 2017, em El Salvador, mas nunca aconteceu.
A principal razão foi a gravíssima situação política e social da Venezuela, que levou vários países latino-americanos a solicitar a suspensão da cúpula e a apresentar notas verbais contrárias ao regime de Nicolás Maduro no âmbito da CELAC, que também enfrentou quatro anos de paralisia agravada pela retirada do Brasil, recentemente readmitido.
As consequências sísmicas do Brexit, da pandemia e das dinâmicas endêmicas de desintegração na América Latina contribuíram para um longo período sem cúpulas, um sintoma da fragilidade e artificialidade da Parceria Estratégica Birregional, que nunca foi verdadeiramente estratégica.
Os motivos que esfriaram as relações
A pandemia, a guerra na Ucrânia e a presidência espanhola são os principais fatores de reativação das relações entre UE-CELAC em nível mais elevado. Os dois primeiros destacaram algumas das grandes ameaças e fraquezas estruturais da UE em termos de dependência militar da OTAN, base essencial para a defesa da Europa, dependência estratégica da indústria e dependência energética – especialmente da Rússia.
A atratividade da ALC para a EU – com destaque em áreas-chave como lítio, metais de terras raras e outros minerais estratégicos, energia ou cadeias de valor – é essencial para uma Europa em processo de reverter as dependências que a colocaram sob a influência da China, da Rússia e dos EUA. O potencial de inserção internacional da ALC é diretamente proporcional à necessidade da UE de reduzir suas fragilidades estruturais.
A Espanha toma a iniciativa
Nesse contexto de vulnerabilidade europeia, o Conselho de Assuntos Exteriores de 18 de julho de 2022 concordou em “impulsionar um salto qualitativo nas relações entre a UE e os países da ALC”, e a Espanha tomou a iniciativa de realizar a cúpula durante sua presidência do Conselho da UE.
Desde a cúpula que deveria ter sido realizada em outubro de 2017, doze países assumiram a presidência e nenhum organizou o evento. A ALC não foi prioridade nem para os grandes países, como Alemanha ou França, nem mesmo para Portugal, que priorizou a sexta cúpula UE-União Africana. E o que não é prioritário, não é estratégico.
No entanto, a presidência espanhola prioriza a retomada das relações com a ALC, demonstrando que a Espanha continua sendo o único país europeu com uma visão estratégica do bloco, apesar dos anos de abandono que exigem uma reconsideração do modelo de relacionamento. Os objetivos ambiciosos da presidência espanhola vão desde garantir a sustentabilidade e periodicidade das cúpulas até a modernização dos acordos com o México e o Chile, desbloqueio do acordo com o Mercosul, além de uma aliança verde e uma aliança digital dentro da estratégia de investimento Global Gateway.
A antecipação das eleições gerais na Espanha para 23 de julho não deve alterar a agenda prevista, mas talvez as prioridades do novo governo em relação à América Latina e ao Caribe, caso haja uma mudança de direção. O objetivo deve ser devolver à América Latina e ao Caribe um lugar prioritário na política externa espanhola, que nunca deveria ter sido abandonado.
A UE precisa de uma relação estratégica real com a ALC, por mais complexa e heterogênea que seja a região, o que exige repensar o modelo, talvez abandonando o formato artificial UE-CELAC, abrindo espaço para uma relação mais pragmática e equilibrada que abandone a retórica, que normalize as assimetrias e divergências, até mesmo em valores essenciais como democracia e direitos humanos, e que se baseie em projetos concretos e áreas estratégicas que permitam articular parcerias de maior alcance, inclusive em fóruns multilaterais onde a ALC possa se afastar ainda mais da UE.
Nesse sentido, a recente Comunicação da Comissão Europeia “Uma nova agenda para as relações entre a UE e a América Latina e o Caribe”, de 7 de junho, traz uma nova e incerta esperança.
A presidência espanhola do Conselho da UE está dando frutos
A presidência espanhola fez um investimento estratégico na ALC que certamente trará resultados, embora não faça milagres. O principal fator de sucesso da cúpula será o abandono do eurocentrismo, permitindo que a UE enxergue a ALC, superando a visão primitiva de manufatura e commodities, como um parceiro necessário para reduzir suas dependências estruturais, mas dentro de uma relação equilibrada. Também ajudaria o estabelecimento de um quadro institucional que poderia trazer sustentabilidade e estabilidade para a relação, por exemplo, explorando o potencial da Fundação EU-LAC como organização internacional.
Se isso não acontecer, e talvez não aconteça, a Espanha deve aproveitar, pelo menos, o esforço, o sólido vínculo ibero-americano – vinte e oito cúpulas ibero-americanas foram realizadas de forma ininterrupta – e a conjuntura favorável para reativar sua própria relação estratégica com a ALC.
Seu valor é inestimável na definição de um novo cenário internacional, eventualmente multipolar, com um peso crescente do Sul global e dos BRICS, aumentando seu potencial como líder em inovação e transição energética.
Jorge Quindimil é Professor Titular de Direito Internacional Público e Relações Internacionais, Universidade de Corunha
*Imagem em destaque: Plenário durante a Cúpula UE-CELAC em 2015 (Serviço Europeu de Ação Externa , CC BY-SA)
**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução de Marcos Diniz
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