Governo do Brasil sob assédio do mercado e da direita moralista
Até agora, em 2024, a agitação dos legisladores é ostensiva no Brasil durante as votações de medidas propostas pelo governo, sobre questões econômicas ou morais, localmente chamadas “de costumes”. Imagem: Lula Marques / Agência Brasil.
POR MÁRIO OSAVA
RIO DE JANEIRO – O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o seu governo enfrentam uma deterioração da governança e da popularidade, entre as pressões econômicas para a austeridade fiscal e um parlamento dominado pelo moralismo de extrema-direita.
A desaprovação dos empresários, especialmente do mercado financeiro, às recentes medidas e propostas do governo de esquerda moderada reflete-se na taxa de câmbio da moeda nacional e na Bolsa de Valores de São Paulo.
O dólar comercial atingiu 5,40 reais na quarta-feira, 12 de junho, o maior valor desde 4 de janeiro de 2023, quando chegou a 5,45 reais devido às incertezas sobre o início do governo Lula. O dólar subiu 2,9% nos primeiros doze dias de junho e 11,4% no acumulado do ano, enquanto o índice da bolsa caiu 10,6%.
A moeda brasileira está entre as mais desvalorizadas do mundo, juntamente com as de países em conflito armado, como a Nigéria e o Sudão do Sul, ou em grave crise econômica, como a Argentina e a Venezuela.
O governo acumula derrotas no Congresso Nacional legislativo, especialmente em questões consideradas “de praxe”, uma prioridade para os ultraconservadores, liderados por líderes religiosos, principalmente de igrejas evangélicas.
Mulheres protestam contra a proibição do aborto legalizado desde 1940 no Brasil, em frente ao Conselho de Medicina de São Paulo. O órgão regulador nacional proibiu os médicos de realizarem a interrupção da gravidez se ultrapassar as 22 semanas. Imagem: Rovena Rosa / Agência Brasil.
Moralismo antiético
O caso mais alarmante da atual ofensiva reacionária é um projeto de lei que equipara qualquer aborto de fetos com mais de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio.
A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira, 12, em regime de urgência para a votação dessa proposta de um deputado do Partido Liberal, de extrema-direita.
A lei atual, que data de 1940, considera o aborto legal em casos de violação e de risco de morte para a mãe, sem o limitar a qualquer período de gestação. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal acrescentou uma terceira exceção à criminalização e a anencefalia do feto passou a ser uma justificativa legal para a interrupção da gravidez.
Lula e sua equipe, com poucas exceções, não se manifestaram sobre essa tentativa de retrocesso de 84 anos nos direitos das mulheres. O governo deveria dar prioridade às questões econômicas e relegar para segundo plano as questões de “costumes”, em que prevalecem os conservadores que dominam o atual Congresso, segundo os líderes pró-governamentais.
Mas a ministra da Mulher, Cida Gonçalves, reagiu. O projeto, se aprovado, agravaria “a epidemia de abuso sexual infantil” e o número de meninas grávidas com menos de 14 anos, que seriam “re-vitimizadas”, protestou.
Dados do Sistema Único de Saúde apontam que, no Brasil, há uma média diária de 38 meninas que se tornam mães.
Representantes do movimento feminista, incluindo deputadas, lembram que 60% dos estupros têm como vítimas meninas com menos de 14 anos. “Menina não é mãe”, é o slogan de rejeição do projeto de lei.
A nova lei proposta pela direita moralista condenaria as meninas ou as mulheres a penas de prisão entre seis e 20 anos, a pena por homicídio comum, alargada aos médicos e outros responsáveis pela realização de abortos.
Já os violadores estão sujeitos a penas de seis a 10 anos, que podem ser aumentadas para 14 anos se causarem lesões corporais graves. Por outras palavras, o objetivo é penalizar mais a vítima do que o agressor.
A Câmara dos Deputados e seu poderoso presidente, Arthur Lira (Progressistas), são um ponto focal da oposição, onde nascem muitas medidas contrárias ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva e são bloqueadas outras que interessam ao poder executivo. Imagem: Mario Agra/Câmara dos Deputados.
Oposição dentro e fora do Congresso
Essa questão reflete a fragilidade do governo num Congresso em que uma maioria definida como centrista, apelidada de “Centrão”, segue em grande parte a liderança da extrema-direita, liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seu Partido Liberal (PL), cuja bancada soma 99 deputados e 14 senadores.
É o maior partido na Câmara dos Deputados, com 513 deputados, e o segundo maior no Senado, com 81 membros.
Mais liberdade para os civis comprarem e possuírem armas, maior controle da droga e dos regimes prisionais, bloqueio das tentativas de punir a desinformação nas redes digitais e restrições aos direitos das minorias sexuais são outras áreas em que os avanços da extrema-direita não se limitam à esfera legislativa.
O Conselho Federal de Medicina, por exemplo, proibiu, a 24 de abril, os médicos de praticarem a assistolia fetal, a paralisia do coração por injeção, para promover o aborto após as 22 semanas de gestação.
O Supremo Tribunal Federal suspendeu a medida, uma vez que esta violava a legislação em vigor e excedia os poderes regulamentares do referido Conselho.
As ações legislativas da extrema-direita prosperam perante a perda de popularidade do governo, que se encontra evidentemente na defensiva. As sondagens de opinião apontam para uma queda acentuada da aprovação desde meados de 2023.
A ministra do Ambiente e das Alterações Climáticas, Marina Silva, opõe-se à exploração de petróleo perto da foz do rio Amazonas, uma posição que a coloca em conflito com o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que decidiu promover o projeto como “uma oportunidade” para o crescimento econômico do Brasil. Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil.
Erosão da credibilidade
Em pesquisa realizada em março, 58% dos 2002 entrevistados pelo Instituto Datafolha manifestaram decepção, afirmando que Lula fez menos do que se esperava.
Não é incomum que a confiança popular se perca no segundo ano de governo. Na América do Sul, governantes de uma nova esquerda, como Gustavo Petro na Colômbia e Gabriel Boric no Chile, também sofreram uma rápida erosão do apoio popular.
Mas, no Brasil, o titular do cargo representa um seguro contra a ameaça antidemocrática da extrema-direita, uma situação semelhante à dos Estados Unidos, onde o presidente Joe Biden se apresenta como o único capaz de impedir o retorno de Donald Trump ao poder.
Bolsonaro foi cassado pela Justiça Eleitoral até 2030 por graves irregularidades, mas o ex-governador mantém a capacidade de mobilizar seus seguidores para disputar novamente a presidência por meio de um aliado.
Além disso, Lula gerou expectativas de uma bonança econômica e social, bem como uma certa pacificação política, para superar a polarização radical que dominou o país nas eleições presidenciais de 2018 e durante o governo de Bolsonaro (2019-2022).
Na frente econômica, onde Lula e o ministro das Finanças Fernando Haddad ganharam a aprovação geral em 2023, por avançarem com uma reforma fiscal tentada sem sucesso nas três décadas anteriores e apresentarem um plano de recuperação fiscal aceito com algumas restrições pelo mundo econômico.
Mas em 2024 algumas medidas destinadas a aumentar as receitas foram rejeitadas pelo Congresso e pela comunidade empresarial, em geral, gerando reações negativas. O governo só quer aumentar impostos, em vez de reduzir os gastos públicos que estão crescendo de forma insustentável, criticam economistas e empresários.
A aprovação de algumas medidas, como a taxação de pequenas importações de até 50 dólares, favorece as contas públicas, mas afeta a popularidade do governo junto às camadas mais pobres que recorrem a essas importações.
Noutros casos, como a eliminação dos subsídios para a recuperação das empresas de promoção de eventos atingidas pela paralisação das atividades durante a pandemia de Covid-19, foi conseguida num acordo com o Congresso.
O governo teve de abdicar do equivalente a cerca de 3 bilhões de dólares em receitas para aprová-lo.
Mas outras medidas foram rejeitadas liminarmente, como a tentativa de acabar com a redução da contribuição previdenciária de empresas de 17 setores que empregam muitos trabalhadores, visando gerar mais empregos.
A medida, adotada em 2011, deveria ter terminado em 2014, mas foi prorrogada várias vezes. Agora, o governo teve de aceitar um acordo para suprimi-la gradualmente até 2027.
A última proposta do governo, de acabar com os créditos fiscais para as grandes empresas, encontrou forte oposição e é a razão imediata da queda do real e do mercado de ações.
Além da crescente oposição do chamado mercado ao que é visto como uma política fiscal frouxa de aumento de gastos, o governo enfrenta um conflito ambiental.
Lula anunciou que vai avançar com a exploração de petróleo na área da foz do rio Amazonas, condenada por ambientalistas e pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.
“Não podemos perder nenhuma oportunidade” de promover o crescimento econômico nacional, disse o presidente.
Garantiu que todos os requisitos ambientais serão cumpridos, mas arrisca-se a sofrer mais uma erosão da sua credibilidade, uma vez que prometeu gerir um governo ambiental após ser eleito pela terceira vez como presidente do Brasil em outubro de 2022.
Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.
É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.