O ovo da serpente
Na virada do século XIX ao século XX, muitos analisavam as ações humanas a partir da ideia de “sobrevivência dos mais aptos” para concluir que o aparelho estatal não deve auxiliar os membros descartáveis da espécie, os pobres. A ética eugenista advém das teses do evolucionismo progressivo embutida, já, na guerra hobbesiana de todos contra todos. O princípio competitivo culminou em campos de extermínio, na Segunda Guerra Mundial. A vitória dos nazistas confirmaria a total superioridade ariana sobre as vítimas, do mesmo modo que ser rico atestaria um sucesso na seleção natural. O darwinismo remetido do biológico para o social nutre-se do conceito de “competição”.
A luta diária pela existência no moedor de uma concorrência inclemente celebra os vencedores (winners) e despreza os perdedores (losers). Por mais justiça ou menos luta de classes, socialistas e liberais defendem uma evolução gradativa com programas de educação para atenuar insuficiências do “capital familiar” com o “capital escolar” (Pierre Bourdieu). Mas a medida acha-se bloqueada no estágio neoliberal do capitalismo. O hiperindividualismo e a desorganização das atividades laborais freiam a possibilidade de soluções coletivas radicais. Eis o nó urgente a desatar, para avançarmos.
Em A teoria da classe ociosa (1899), que abrange os nobres e agregados, Thorstein Veblen pergunta se o sistema social não está selecionando predicados errados qual a astúcia, a esperteza, a ardileza e a dissimulação para aferir o que é “aptidão”. Com critérios do tipo, Tiradentes não seria um herói nacional, e o padre Júlio Lancellotti não seria símbolo da cristandade quando põe as necessidades dos oprimidos e explorados acima do preconceito dos poderosos. Ao contrário do que julga o senso comum, “apto” não é sinônimo de “melhor”, exceto para o próprio sistema. Onde os fracos não têm vez, a solidariedade e a empatia com o sofrimento de outrem não fincam raízes fundas na sociedade.
O fosso que separa as classes sociais é ampliado na “sociedade de informação”, o que joga água no moinho da renda básica universal. A fome que atinge quase um bilhão de pessoas se multiplica de forma geométrica. O alerta instiga tendências autoritárias para disciplinar a natalidade excedente com o discurso da diferença entre culturas, países, raças, classes, indivíduos – ativando os devaneios exterminadores. A recusa dos Estados desenvolvidos em assumir os desequilíbrios ambientais, e indenizar os territórios periféricos pelas catástrofes com a crise climática, ilustra o eugenismo imperialista. Os órgãos multilaterais não têm força. O mundo unipolar criou uma sub-humanidade.
Ascensão do extremismo
O abolicionista Joaquim Nabuco enfatizava que fazer a Abolição “foi fácil” (após 350 anos!). Difícil é extirpar o vezo escravista da alma das elites, acostumadas à lógica da dominação e da subordinação. O tratamento dos corpos dóceis disponíveis aos apetites dos proprietários oculta-se ora com o disfarce cínico da Reforma Trabalhista e da Lei das Terceirizações, ora mostra-se no trabalho análogo à escravidão. O neoliberalismo reproduz, hoje, os vícios e as atrocidades dos regimes coloniais. O porta-voz do abolicionismo tinha razão. O Brasil é uma equação por resolver.
Nos corações corrompidos é usual a utilização de quaisquer meios para chegar aos fins últimos, embora ao revés da ética e da legalidade. O macrocosmo financeiro com juros nas alturas drena vultosos recursos do povo aos bancos com base na Taxa Selic, apoiados no Congresso pelo BBB, as bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia. Se fossem divulgados os métodos com que chefes de hordas de bandidos tornaram-se reis; ou os mil estratagemas ilícitos na acumulação primitiva do capital de sobrenomes famosos – até os santos de vitrais lhes virariam a cara. Basta prestar atenção na lista de envolvidos na fraude de R$ 25,2 bilhões das empresas Americanas para ver que são os globotrotters da riqueza, lê-se na Forbes Brasil. O dinheiro limpa a sujeira da reputação na seleção dita natural.
A degradação moral e cerebrina da classe média, que se identificou com um homem sem qualidades democráticas e republicanas, foi decisiva para a ascensão da extrema direita. Na identificação não pesou a liquidação do patrimônio nacional, a patética rendição ao semipresidencialismo e a série de improbidades administrativas especificadas no Relatório da CPI da Covid. Na governabilidade com o signo da sobrevivência dos “aptos”, o moralismo mira defensores de pequenos. Pesa o sentimento de menoscabo entre os que se creem desprestigiados pelas políticas igualitárias do PT (Partido dos Trabalhadores) voltadas para os pobres, as mulheres, os negros, os grupos LGBTQIA+ e, vale ainda acrescentar, o movimento dos sem-teto, dos sem-terra, e dos agricultores familiares. Ler o artigo “O ressentimento é real”, de Cesar Zucco, David Samuels e Fernando Mello (Piauí, fevereiro 2024).
O desgoverno neofascista agravou as desigualdades no país, diminuiu a participação dos salários no PIB, acelerou a desindustrialização e aceitou a internacionalização do preço de combustíveis para alavancar os dividendos dos acionistas. Na receita não constava uma vontade de desenvolvimento econômico sustentável, com distribuição de renda. Sua visão colonizadora de nação invocou uma loja de conveniências para potências estrangeiras. A falta de vocação ao serviço público se traduziu nas privatizações e fatiamentos de áreas estratégicas – Eletrobras, Petrobras… Netanyahu, Trump e Bannon pensavam sobre os problemas geopolíticos globais, pelo inelegível. O golpista Temer crucificou os trabalhadores, Bolsonaro jogou a pá de cal. A mídia corporativa avalizou o espetáculo.
Aprendizagem amarga
O ex-presidente entregou o Orçamento da União ao macho alfa dos deputados que se imagina um premier na ilusão parlamentarista. Pôde dedicar-se à liberação das joias. Trazer o tesouro sem dar entrada na Receita Federal, era a questão hamletiana. O avião presidencial foi colocado à disposição para resgatar a prebenda milionária ofertada pelo generoso príncipe da Arábia Saudita, que comprou a Refinaria Landulpho Alves, na Bahia, por lance abaixo do que valia conforme a Controladoria-Geral da União (CGU). Apesar da pressão das autoridades, o presente – ou algo mais – foi retido pelos funcionários da Receita. Pilotar o jet-ski no horário do expediente ajudou a espairecer. Os R$ 17 milhões pingados no Pix na estranha compensação à frustração fiscal, também. Um escândalo.
A Abin (Agência Brasileira de Inteligência), paralela, vigiou ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a procuradora do caso Marielle e trinta mil cidadãos. A vendetta do patriarcado (sexismo) e do colonialismo (supremacismo branco, hétero) foi feita com o fígado, não com a mente. A reunião ministerial de 5 de julho e o encontro subsequente com os embaixadores no 18 de julho de 2022, para angariar um apoio internacional ao putsch, foram o pico de Q.I. da Abin marginal. Agora, a notícia é que a Polícia Federal fez operação de busca e apreensão, em Angra dos Reis. Diz-se que o celular do vereador é “explosivo”. Ou denuncia os desígnios dos fasci di combattimento; ou arrola a corruzione tra amici. Confidências que não deveriam transpor o cercadinho da famiglia unita. “A verdade vencerá”, anota Luiz Inácio no livro enviado ao Papa Francisco. Quem não deve não teme.
Psicopatas consideram normal o ex-presidente manter na cabeceira as memórias do ex-chefe do Doi-Codi (1970-1974), o torturador condenado pela Justiça. O nome da obra, A verdade sufocada: A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça, sugere uma sádica modalidade de tortura, a asfixia; é uma confissão. “O peixe morre pela boca”. Perversos abstraem do julgamento os valores morais e civilizatórios. Sua concepção de democracia é opiniática e formalista, azar se o conteúdo implica um retrocesso civilizacional. Sua distopia ideal é uma ilha governada por milicianos parasitários, que fazem rachadinhas nas comunidades sem preocupação com o bem-estar da população. O saldo final justificaria todos os atos ignóbeis, e os assassinatos. O darwinismo social badala o resultado da competição, é um propagandista do que está consumado – o establishment.
O livro legitima a ditadura civil-militar, com a narrativa negacionista sobre covardias institucionais. Não desvenda a história; desvenda os pretextos do autor. Citado na declaração de voto do bronco parlamentar, em 17 de abril de 2016 (Dia da Misoginia), em dois meses era o sexto na lista de não-ficção dos mais vendidos. Em 2018, alçou a 14° edição. A pequena burguesia líquida se instruía. O ovo da serpente estava em incubação. Adiante, o capitão subiria a rampa do Palácio. Sem dignidade, abreviou o mandato e fugiu pela porta dos fundos para os Estados Unidos. Sumiram até as moedas de centavos atiradas no espelho-d’água por visitantes, defronte a morada oficial da despresidência. Como no verso do poema A aprendizagem amarga, de Thiago de Mello: “Chega um dia em que o dia se termina / antes que a noite caia inteiramente”. Então o futuro se apresentou – com Lula lá.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul