Militares se afastam da política no Brasil e buscam conter os danos
Forças Armadas conseguiram afastar-se do poder político formal e evitar, no processo de redemocratização, o julgamento e condenação de seus integrantes. Agora, isso não parece possível: é a condenação de alguns que poderá mitigar a desonra militar.
POR MÁRIO OSAVA
RIO DE JANEIRO – Uma retirada ordenada, com mortes e feridos, mas sem uma derrota que destrua sua imagem como instituição, é uma das habilidades políticas dos militares no Brasil, comprovada em sua história e posta novamente à prova agora.
O tenente-coronel Mauro Cid, que foi ajudante de campo do ex-presidente Jair Bolsonaro, decidiu aceitar a “premiada colaboração” com a Polícia Federal nas investigações de diversos crimes que teriam ocorrido durante o governo de extrema-direita, incluindo uma tentativa de golpe de Estado dias após de deixar o poder em 2022.
Cid agora é um “homem-bomba” que pode levar à cadeia o ex-presidente, também militar que deixou o Exército como capitão em 1988, e ter sua carreira militar arruinada por indisciplina e até suspeita de ato terrorista.
A prisão do tenente-coronel, ainda da ativa no Exército, ocorreu no dia 3 de maio por um crime menor, a falsificação dos certificados de vacinação anti-Covid de sua família e a de Bolsonaro e sua filha, comprovado pelos registros do sistema público de saúde.
Seu celular, então apreendido pela Polícia Federal, tornou-se uma mina de informações sobre diversos outros supostos crimes sob investigação envolvendo o ex-presidente e seus associados.
Entre eles, destaca-se a participação na tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro, o contrabando de joias presenteadas a Bolsonaro por governos estrangeiros, uma campanha para desacreditar o sistema eleitoral e a gestão mortal da pandemia.
Cid não teve a sorte, nem a habilidade do ex-ministro da Justiça e comissário da Polícia Federal, Anderson Torres, que também foi preso no dia 14 de janeiro, mas sem o celular. Ele disse que o perdeu nos Estados Unidos, onde estivera na semana anterior.
Ele permaneceu detido até 11 de maio por suspeita de omissão na tumultuada invasão e vandalização das sedes dos três poderes democráticos em Brasília, no dia 8 de janeiro, por uma multidão de seguidores radicais de Bolsonaro que exigiam um golpe militar. Ele está livre, mas com um dispositivo eletrônico de rastreamento no tornozelo.
Do silêncio à colaboração premiada
Cid permaneceu em silêncio durante os interrogatórios da polícia e da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os acontecimentos de 8 de janeiro. Mas substituiu o advogado em agosto, num sinal de que ia aproveitar a “delação premiada”, um dispositivo da justiça brasileira que permite a redução da pena em troca de colaboração na investigação.
Isso se concretizou no dia 6 de setembro, ele quando compareceu ao Supremo Tribunal Federal para confirmar sua nova disposição de colaboração. Nos dias anteriores, Cid já havia respondido perguntas da Polícia Federal por mais de 20 horas em dois interrogatórios.
A formalização judicial da colaboração ainda depende do ministro do Supremo, responsável pelo processo, Alexandre de Moraes, que deverá também considerar o parecer do Ministério Público (Ministério Público). Dificilmente será rejeitada, dada a relevância das informações que o tenente-coronel poderia fornecer.
Tenente-coronel Mauro Cid (Imagem: Câmara Distrital/Fotos Públicas).
Cid foi um ajudante de campo muito atuante durante os quatro anos de governo Bolsonaro, iniciado em 1º de janeiro de 2019, e uma espécie de braço direito do presidente para todas as atividades, institucionais e pessoais.
Administrou as contas bancárias e inúmeras operações de caixa da família Bolsonaro e esteve permanentemente presente em suas atividades políticas, administrativas e diplomáticas. Ele era praticamente um membro da família e tinha até quarto no Palácio da Alvorada, residência presidencial.
Seu celular revelou diálogos sobre as tentativas de golpe até mesmo com outros militares da ativa e é um valioso ponto de partida para ampla colaboração, além de fator de pânico entre os apoiadores de Bolsonaro.
Danos militares
Os impactos desses estreitos laços militares já tiveram as suas consequências. A nomeação do tenente-coronel Cid como comandante de um batalhão de operações especiais do Exército em Goiânia, a 200 quilômetros de Brasília, foi o estímulo para a destituição do general Julio César de Arruda do cargo de comandante do Exército, no dia 21 de janeiro.
O general já incomodava o novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do esquerdista Partido dos Trabalhadores, por não punir os militares que participaram dos atos golpistas e tolerar os acampamentos de apoiadores de Bolsonaro que exigiam o golpe militar diante dos quartéis, desde a derrota eleitoral de Bolsonaro em 30 de outubro.
A gota d’água foi colocar Cid como chefe da tropa que seria decisiva em um eventual golpe de Estado, devido à proximidade de Brasília, e assim contrariar as recomendações de Lula. Mas as aventuras do tenente-coronel atingem as Forças Armadas em dimensões que vão mais longe.
Foi considerado um oficial exemplar, respaldado pelas melhores qualificações nas escolas militares, além de filho de um general da reserva, Mauro Lourena Cid, de mesmo nome, de grande prestígio e velho amigo de Bolsonaro.
A delação premiada que envolve sua disposição de violar o espírito de corpo e de causar a degradação de colegas militares, incluindo o próprio ex-presidente, mancha ainda mais a imagem do Exército já deteriorada pela estreita associação com a extrema-direita, o governo de direita, com seus surtos autoritários e a má e letal gestão da pandemia.
Mas também representa uma saída menos desonrosa da política para os militares. Trata-se de culpabilizar os indivíduos, identificando e sacrificando aqueles que participaram de atos ilícitos, a fim de absolver a instituição.
Não é um comportamento natural das Forças Armadas. No passado sempre procuraram salvar os seus, e para isso contam com a Justiça Militar. Às vezes, eles até recorreram ao cinismo para evitar a sua própria condenação.
Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, é um dos investigados pela polícia e pelo parlamento pela tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro. Ele é suspeito de omissão durante a invasão das sedes dos três poderes democráticos quando era secretário de Segurança de Brasília. A polícia não conseguiu acessar as informações de seu celular porque argumentou que ele o perdeu nos Estados Unidos. Imagem: Joédson Alves/Agência Brasil.
Salve a imagem
Um exemplo é o ataque ao Riocentro, grande local de eventos na zona oeste do Rio de Janeiro, em 30 de abril de 1981. Uma bomba explodiu dentro de um carro que estava estacionado em seu estacionamento, matando um sargento e ferindo gravemente um capitão, os dois ocupantes do veículo.
Era evidente a sua intenção de pelo menos criar pânico entre os milhares de participantes num espetáculo musical, por ocasião da comemoração do Dia dos Trabalhadores, no dia seguinte, que poderia ter provocado muitas mortes por pânico e fuga descontrolada. Mas a investigação militar, quando ainda vigorava a ditadura militar, que começou em 1964 e só terminou em 1985, concluiu que os dois militares foram vítimas de um atentado terrorista, atribuído à esquerda.
A farsa foi formalmente negada 18 anos depois por outra investigação militar, mas o capitão envolvido, Wilson Machado, continuou sua carreira sem contratempos e ascendeu a coronel.
A ditadura terminou com uma retirada ordenada das Forças Armadas, através do que se chamou de “abertura política lenta, gradual e segura”, iniciada em 1974 pelo General Ernesto Geisel, presidente de 1974 a 1979, e concluída pelo seu sucessor, o General João Figueiredo.
Em 1979, Figueiredo decretou anistia para presos e exilados, que os militares exigiam ser “recíproca”, por isso foi estendida também aos fardados que participaram de torturas e assassinatos durante a ditadura.
As Forças Armadas conseguiram afastar-se do poder político formal e evitar, no processo de redemocratização, o julgamento e condenação de seus integrantes comprovadamente envolvidos em crimes contra a vida e os direitos humanos.
Não foram forçados a permitir que o seu próprio pessoal fosse processado e condenado pela justiça civil. Agora isso não parece possível, pelo contrário, é a condenação de alguns que poderá mitigar a desonra militar.
Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.
O presidente Lula com os três principais comandantes das Forças Armadas – Almirante Marcos Sampaio Olsen (Marinha), General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva (Exército) e Tenente-Brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno (Aeronáutica) – e o Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, nas comemorações do Dia da Pátria, 7 de setembro, em Brasília. O governo tenta selar a pacificação das relações com os militares. (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)
É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.