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Como a Copa do Mundo foi parar no Qatar

Trabalho escravo e suspeitas de corrupção. Ex-presidente francês Sarkozy no olho do “Qatargate”

Para quem não tinha entendido como uma Copa do Mundo de futebol pôde ser atribuída a um pequeno emirado sem nenhuma tradição futebolística, situado no Oriente Médio, com um clima desesperadamente quente e sem nenhuma infraestrutura quando ganhou a indicação em 2010, as quatro páginas de duas edições do “Le Monde” sobre o “Qatargate”, publicadas dias 16 e 17 de novembro, foram uma revelação. O escândalo da atribuição é investigado na Justiça francesa e envolve o ex-presidente Nicolas Sarkozy.

     O primeiro texto intitula-se « Sarkozy, Platini e o emir… Por dentro do ‘Qatargate’ ».  O segundo tem como título: o futebol aos negócios… Por dentro do ‘Qatargate’”.
 
     Para mim que, em 2018, resenhei para a “Carta Capital” a biografia de Joseph Blatter, conhecido como Sepp Blatter, ex-presidente da FIFA, o « Qatargate » não é uma novidade. Além do livro, o site de informação Mediapart já tinha revelado parte do que se escondia por trás da copa no Qatar.

     No livro de Blatter, o ex-presidente da FIFA acerta contas com muitos personagens influentes no mundo do futebol, sobretudo, com o francês Michel Platini e com o suiço-italiano Gianni Infantino, atual presidente. O livro se intitula « Ma vérité », acenando com a possibilidade de haver outras verdades.

    Michel Platini e Sarkozy: interesses da França

    Na reportagem do Le Monde sobre o « Qatargate », Michel Platini é apresentado como partidário da candidatura americana para sediar a Copa de 2022, tendo sido devidamente convencido a apoiar o Qatar depois de um almoço no Palácio do Eliseu dia 23 de novembro de 2010. Na ocasião, Sarkozy reuniu o atual emir, Tamin Al Thani, então príncipe herdeiro do Qatar, o primeiro-ministro Hamad Ben Jassem, Michel Platini, presidente da União das Associações Européias de Futebol (UEFA), o secretário-geral do Eliseu, Claude Guéant e a conselheira do presidente da República para assuntos de esportes, Sophie Dion.

    Em 2019, uma informação judiciária foi aberta pelo Parquet National Financier (PNF) por « corrupção ativa e passiva » no que concerne a atribuição controversa (por 14 vozes a 8, dadas aos Estados Unidos) do Mundial de 2022 ao Qatar.

    No livro de Blatter, a escolha do Qatar é narrada como uma queda de braços entre ele mesmo, que defendia a candidatura americana, e Michel Platini, presidente da UEFA (Union of European Football Associations), que defendia a candidatura qatari.

    Depois da leitura do alentado texto do Le Monde, uma conclusão se impõe: se Sarkozy não tirou proveito pessoal, sua intervenção no almoço de 23 de novembro de 2010 trouxe resultados econômicos espetaculares para a França.

     No ano seguinte, o Paris Saint-Germain, periclitante financeiramente, foi comprado pelo fundo Qatar Sports Investiments (QSI) e inúmeros hotéis de luxo na Côte d’Azur e em Paris passaram às mãos de milionários do Qatar. E uma lei francesa deu isenção fiscal aos dividendos desses investimentos.

     Além disso, 80 aviões Airbus A350 foram vendidos por 16 bilhões de dólares pela França ao emirado. Sem contar  as empresas francesas de construção, transportes e infra-estrutura que participaram desde então na construção de hotéis, transporte e estádios para receber a Copa do Mundo.

     Os direitos humanos não são o forte do emirado, que não controlou com rigor a contratação dos milhares de trabalhadores asiáticos emigrados para a construção dos estádios e de hotéis. Eles trabalhavam em regime de semi-escravidão e o balanço desastroso denunciado por diversos organismos de defesa de direitos humanos é de mais de seis mil operários mortos durante a preparação da Copa, também vista como uma « aberração ecológica » por inúmeras razões que o “Le Monde” analisou em duas páginas de um caderno especial. A crítica à atual Copa foi se intensificando desde 2010, à medida que a consciência da crise ecológica se tornava mais aguda.

     Qatar, um affaire francês

      A atribuição da Copa ao Qatar ficou engasgada na garganta de Blatter, que contou no livro:

     «Para a Copa de 2022, eram elegíveis os Estados Unidos, o Japão, a Coreia, o Qatar e a Austrália. Delegações da Fifa foram a cada país fazer um relatório para os membros do comitê executivo. Mas ninguém lê esses documentos pois já têm uma ideia pronta, seja por convicção seja por influências políticas. Se os relatórios tivessem sido lidos com atenção teriam visto que a Copa do Mundo não poderia ser no Qatar ».
     
    As duas Copas, de 2018 e 2022 foram atribuídas no mesmo dia, 2 de dezembro de 2010. A escolha da Rússia, parecia uma evidência pois o leste europeu nunca tinha organizado uma Copa « e nessa região apenas a Rússia tinha condições de organizar uma competição desse nível ».
   

    Blatter e seu comitê ponderaram que o Japão e a Coréia já haviam organizado em 2002, o Qatar era um território pequeno demais para sediar um mundial e a Austrália era longe demais. Havia um consenso quase geral de que a Copa de 2022 iria para os EUA.

    « Há suspeitas de corrupção da parte do Qatar », escreve Blatter. Um vídeo mostra o taitiano Reynal Temarii recebendo a proposta de um milhão e meio de dólares para um voto a favor do país do golfo. Temarii foi suspenso por oito anos pela comissão de ética da Fifa, em maio de 2015.

    Mas ele admite que o fundamental para o Qatar ganhar a Copa foi a visita ao presidente Sarkozy, em 23 de novembro de 2010, do então príncipe herdeiro do Qatar, Tamim ben Hamad al-Thani, o atual emir.

    No final do almoço, Platini se reuniu com o presidente francês e telefonou a Blatter para lhe dizer que « não contasse com seus votos para os Estados Unidos pois não podia dizer não a Sarkozy, diante dos interesses da França ».

    Fim de reinado

    O reinado de Blatter na FIFA foi interrompido por uma inesperada ação da Justiça suíça, a pedido da Justiça americana. A investigação visava uma série de pessoas, mas ele estava excluído dela. Sepp Blatter foi surpreendido dia 27 de maio de 2015 pela Justiça suíça, que prendeu alguns delegados e membros do comitê executivo da Federação International de Futebol na véspera do 65° Congresso da entidade. O brasileiro José Maria Marin, que sucedeu a Ricardo Teixeira na presidência da Confederação Brasileira de Futebol em 2012, era um dos presos. Marin era membro do comitê da FIFA para a organização de torneios olímpicos. Como os outros presos, foi transferido posteriormente para os Estados Unidos.

    A impressão que habita Blatter é que foi traído por colaboradores que apressaram seu afastamento ao convencê-lo de pôr seu mandato à disposição.
   
    Dia 20 de abril de 2017, durante sua audição, Blatter contou sua conversa com Platini ao juiz suíço que dirigiu a investigação sobre as atribuições das Copas do Mundo de 2018 e 2022.

   « Como sou um homem confiante, não gravo minhas conversas. Deveria tê-lo feito. O jornalista Philippe Auclair contou num livro os detalhes da negociação financeira. Não sei e nem quero saber se existe relação entre a atribuição da Copa ao Qatar e o que se passou depois. Mas a França vendeu aviões militares e civis ao país, apenas seis meses mais tarde. Além disso, o Paris Saint-Germain foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011 por 76 milhões de euros, salvando o clube de dificuldades financeiras. E não se pode esquecer que foi criada em junho de 2012 a beIN Sport, televisão filial do grupo Al-Jazira, dirigida então por Nasser al-Khelaïfi, presidente do PSG ».

    A beIN logo ganhou os direitos dos campeonatos europeus, muito bom para a UEFA, presidida por Platini.

« Digo e repetirei o resto da vida, a atribuição das Copas de 2018 e 2022, em dezembro de 2010, foi influenciada por uma ingerência política da França e não por presentes para uns e outros », escreve Blatter.

    Sob pressão dos americanos, o que ficou claro é que não se desejava que Platini fosse presidente da Fifa. « Os americanos não esqueceram que Platini trabalhou pela atribuição da Copa de 2022 para o Catar ».

    Blatter, que deixa transparecer seu narcisismo da primeira à última página, diz que João Havelange fez tudo para se perenizar no cargo de presidente, o que conseguiu pois dirigiu a entidade por 24 anos. Sepp, fez uma carreira fulgurante atingindo o posto máximo da Fifa, fundada em 1904, depois de exercer o cargo de secretário-geral de 1981 a 1998, na gestão do brasileiro João Havelange.

    Sediada em Zurique, a Fifa, que já foi definida como « um Estado sem Estado » é um antro de serpentes, que se detestam cordialmente e desenvolvem estratégias pessoais para amortizar os golpes dos concorrentes.

A ambição pelos altos postos é o combustível que move os dirigentes das diferentes instâncias, fascinados pelos contratos milionários de patrocinadores e direitos para a televisão.

    Sepp Blatter escreve que ao deixar a Fifa recebia por ano 3,2 milhões de francos suíços com os prêmios de antiguidade. No final da Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, uma das mais rentáveis, ele recebeu um bônus de 10 milhões de francos suíços.

    « Quanto ao bônus de 14 milhões de francos suíços que a Fifa decidiu me dar pela Copa do Mundo do Brasil, nunca vi a cor do dinheiro e nunca fui procurá-lo », escreve ele.

     Precisamos não esquecer que o livro se chama « minha verdade ».

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