Até a apuração: Nessun dorma
Lula venceu o debate. Na realidade, trata-se mais de um duelo em que o conteúdo das intervenções não importa muito.
Lula venceu o debate. Na realidade, trata-se mais de um duelo em que o conteúdo das intervenções não importa muito. Pesa mais a atitude, a disposição guerreira de enfrentar o adversário e derrotá-lo com gestos, críticas e argumentos impactantes. Nesse duelo, se o candidato atacado for se defender e dizer que não é bem assim, não é verdade, perde pontos. É como esgrima: uma vez atacado, tem que contra atacar imediatamente. Lembremo-nos da sabedoria antiga: Quem se defende, já perdeu!
Para a grande mídia – Globo, Globonews, Folha, Estadão, CNN, Lula venceu por pontos, e não por nocaute. Mas para as pesquisas da Quaest e Atlas, a vitória de Lula foi mais expressiva. Alguns comentaram que no final ele parecia cansado. Não é para menos, debateu com um mentiroso contumaz que só fez provocações. Mas manteve até o fim uma postura e compostura de estadista e não caiu nas provocações do adversário, que se comportou como um deputado do baixo clero, o que foi confirmado por ele mesmo em seu ato falho no final.
Lula teve momentos magníficos no debate. Outros, nem tanto. Por exemplo, a resposta no tema meio ambiente. Ele poderia destruir o adversário, o que não ocorreu. Bolsonaro repetiu sua informação mentirosa sobre desmatamento que já havia dado no debate anterior e não recebeu resposta contundente. Lula nem precisaria citar dados, bastava falar no “passou a boiada” do Salles, em desmantelamento do Ibama e do CNBio, dos incêndios na floresta, o Brasil é hoje vilão mundial em matéria de clima, algo dramático. Enfim, bola pra frente.
O debate, ou melhor, o duelo, não deve ter impacto no resultado eleitoral. Mas os vídeos com falas dos candidatos vão circular nas redes. E também com a entrevista, após o debate, quando Bolsonaro deu um soco na mesa e foi afastado pelos assessores. Antes disso, porém, ele disse que vai respeitar o resultado das urnas. Foi uma confissão de que não tem força para dar o golpe.
Em meus textos anteriores, critiquei vários artigos que defendiam o cenário único do golpe, dado como certo. Trabalhei com a possibilidade de diversos cenários e considerei o golpe um cenário possível, mas improvável, por falta de apoio político/militar nacional e apoio diplomático internacional. É bom não esquecer que o Presidente dos EUA mandou três diplomatas ao Brasil com a missão de dizer que o sistema eleitoral brasileiro é confiável e dar um recado aos militares: Nada de golpe! O Senado americano chegou a recomendar rompimento de relações diplomáticas com o Brasil em caso de golpe. Afinal, Bolsonaro apoia Trump que apoia Putin, dois inimigos de Biden.
Forçoso é reconhecer que devemos ao Genocida Pedófilo informações importantes. Uma delas é que os conservadores dispostos a apoiar uma ditadura não são apenas 30%, como sempre imaginei. Podemos dizer que 40% do eleitorado apoiariam hoje uma ditadura que viria combinada com um modelo econômico neoliberal, embora nem todos tenham noção disso.
O eleitorado de Bolsonaro não se constitui apenas de empresários, militares e evangélicos. A grande maioria de seus eleitores é formada por conservadores que rejeitam, assustados, o empoderamento das mulheres que não aceitam mais o seu papel tradicional como mãe de família e dona de casa. Nostálgicos da Casa Grande e da Senzala, ficam intimidados com a luta dos negros pela igualdade e escandalizados com a luta dos gays ( LGBTQIA+) pelo reconhecimento de seus direitos. Por exemplo, casamento entre pessoas do mesmo sexo é visto como algo vergonhoso. Além disso, associam desmatamento a progresso.
Assim, no eleitorado de B. não existem apenas interesses econômicos do empresariado capitalista, interesses corporativos dos militares, ou interesses de uma grande massa de evangélicos ludibriados em sua boa fé por pastores corruptos. A grande maioria é mesmo composta por conservadores que introjetaram os valores da sociedade patriarcal, ignorados durante muito tempo pela esquerda como assunto secundário, fora do foco da luta de classes. Após a vitória de Lula, por margem mais apertada do que imaginávamos, a luta contra os valores conservadores da sociedade patriarcal será inadiável. Em vez de desprezar a “pauta identitária”, teremos de articular essas lutas por direitos com as lutas econômicas dos trabalhadores.
Mas nos últimos metros da reta final, a prioridade deve ser buscar indecisos. Na semana que antecede a eleição, é importante procurar os que ainda estão em dúvida. Para minha surpresa, são muitos. Entrei num shopping e conversei com vendedores de várias lojas. Encontrei indecisos, eleitores de Lula e Bolsonaro sem muita convicção, os que vão se abster ou votar nulo. Distribuí um panfletinho personalizado. É uma atuação no plano microssocial complementar à atuação nas redes onde, aliás, predominam os gigantes da comunicação digital: Janones, Felipe Neto e outros.
Essa correria às vésperas da eleição me fez lembrar a ária Nessun Dorma – Que Ninguém Durma – da ópera Turandot, de Puccini, quando a princesa manda todo mundo ficar acordado de noite para descobrir o verdadeiro nome de seu pretendente. No nosso caso, o nome nós conhecemos. Mas que ninguém durma, para convencer mais gente a votar na democracia contra a ditadura, na civilização contra a barbárie.
Liszt Vieira é integrante da Coordenação Política e Conselho Editorial do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da Associação Alternativa Terrazul. Foi Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92, secretário de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (2002) e presidente do Jardim Botânico fluminense (2003 a 2013). É sociólogo e professor aposentado pela PUC-RIO.