A luta pela ‘Árvore da Vida’
Livres da gaiola de ouro que Deus chamou Jardim do Éden, o homem foi obrigado a tirar com suor o sustento “com trabalhos penosos”; leia-se “precários”. (Imagem: Adão e Eva, Jan Gossaert)
POR LUIZ MARQUES
A Bíblia relata que “Deus tomou o homem (Adão, em hebraico Adam, que veio da terra / barro) e o colocou no Jardim do Éden para o cultivar e guardar. Com um preceito. Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente” (Gênesis, 2:15-17). A serpente estimulou o desacato da mulher – criada da costela do homem – afirmando que não morreriam ao provar o fruto proibido. “Deus sabe que, no dia que comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal” (Gênesis, 3: 4-5), vaticinou “o mais astuto animal”.
A mulher (Eva, em hebraico Hava significa Vida) avaliou o fruto. “De agradável aspecto e apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cintura para si” (Gênesis, 3:6-7). Porém, não morreram. Era apenas um blefe da deidade? Com que necessidade? Licença poética do narrador? Como castigo, foram expulsos do Éden para não tentar os meios de tornarem-se deuses.
Nesta metáfora, tem-se o nascimento: (i) da autonomia; (ii) do conhecimento e; (iii) da moral. Na perspectiva religiosa a ênfase recai sobre a desobediência que resultou no pecado primevo, “a culpa original”. As três dimensões do ideal de humanidade seriam o caminho que conduz à perdição. A autonomia retirou Adão e Eva do paraíso, onde eram felizes e não sabiam. O conhecimento afastou-os da proteção divina. A moral foi o preço pela ousadia de fazer escolhas independentes, qual Prometeu na mitologia grega ao levar o fogo para os humanos.
Na perspectiva dos mortais, a desobediência implicou a emancipação. Houve uma desprogramação. Com a autonomia, porque corresponde à condição que não se deixa dominar por demagogos, hordas de ódio e totalitarismos. O conhecimento, porque permite acessar as artes, a ciência e a cultura. A moral, porque liberta as pessoas dos instintos primários e narcísicos para constituir a família, a sociedade ou a nação. Enfim, para ser o que quiser e fizer.
Jean-Paul Sartre captou o sentido da culpa judaico-cristã, ao dizer que “o homem está condenado à liberdade”, sem um script prévio. Diferente, em consequência, do que apresentam as Sagradas Escrituras ao apontar o destino interrompido pelo ato de rebeldia, em relação à ordem explícita do Poderoso. Postulando que “a existência precede a essência”, o filósofo afirma que o homem não é nada até chegar ao mundo, daí em diante será o que fizer consigo mesmo. Compara o sujeito a um objeto. O relógio teria uma essência, antes de existir foi planejado para dar as horas. O homem não teria um plano, senão uma existência para ser escrita com ações.
Seus olhos abriram-se
Eva foi seduzida pelo fruto “de agradável aspecto e apropriado para abrir a inteligência”. Após morder a maçã, “seus olhos abriram-se” como a serpente previra. No Brasil, saltando para a realidade marcada pelo antiintelectualismo que vivemos entre 2016 e 2022, é preciso contrapor a coragem da mulher à covardia dos fariseus que temem se reinventar.
No mito fundador do Ocidente, os povos encontram força para enfrentar a espada negacionista do neopentecostalismo, do neofascismo e do neoliberalismo. Estes não propõem ir a Canaã, e sim a submissão aos que nos impedem de ver a realidade: os pastores vendilhões do templo, os tiranetes autoritários, ladrões de joias e os rentistas que se locupletam com os escorchantes juros fixados pelo Banco Central. A tríade necropolítica incita a alienação de cada dia.
Livres da gaiola de ouro que Deus chamou Jardim do Éden, o homem foi obrigado a tirar com suor o sustento “com trabalhos penosos”; leia-se “precários”. O Criador não cogitou que Suas criaturas elaborariam a inempregabilidade e o ataque à privacidade pelos algoritmos a mando do capital informacional (Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon). Nem imaginou que um descendente argentino de Caim, de suíças longas, pregaria a legalização do comércio de órgãos do corpo do homo sapiens a quem pagar 30 moedas. Tudo virou mercadoria.
A “liberdade individual” do vizinho boçal esgrima o direito dos ricos comprarem rins e pulmões, nas favelas, para viver mais tempo. Eis o “anarcocapitalismo” do novo messias de esgoto, agora na versão castelhana. O objetivo é derrotar os querubins que protegem a “árvore da Vida”, na acepção biológica e ecológica, para forjar os simulacros de imortalidade.
O capitalismo na fase neoliberal destrói, um a um, os alicerces da dignidade. A capacidade de lutar por autonomia-liberdade, o respeito ao saber acumulado no solo da história e a ética do imperativo categórico kantiano: “Aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se uma lei universal”. Ao contrário, a ideologia dominante enaltece as ações em benefício próprio, não da coletividade. A única comunidade que reverencia no altar é a da Bolsa de Valores.
Onde está a verdade?
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João, 8:32), esse é o versículo favorito dos hipócritas. Slogan do rosário de fake news do Judas Iscariotes de Vivendas da Barra (pesada). Mas para a rediviva Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ultrajadas pela incompreensão do Vaticano em priscas batalhas, permanecem atuais as palavras do apóstolo Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé” (Timóteo, 4:7). Vale a verdade “com a pureza de consciência” do poema de Fernando Pessoa:
“Vi Jesus Cristo descer à terra
Tinha fugido do céu
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras”.
A verdade de que se trata no Vale de Lágrimas é a das crianças que morrem por bala perdida / achada de narcotraficantes ou milicianos ou policiais, que atiram na cor de sua pele e sintomatizam o racismo estrutural. É a morte de Marielle, assassinada por lutar ao lado dos oprimidos e explorados, uma mulher preta, lésbica, de esquerda. É o amor de Vinícius de Moraes com a eternidade que nos dá a admirar para sempre, enquanto dura.
Sobretudo é a chance de habitar em um tempo cuja resiliência reanima o princípio-esperança na utopia, com valores capazes de humanizar todas todos e todes em um outro mundo, tão possível quanto necessário. A cidadania libertária vai estancar o sangue derramado das veias abertas da América Latina. Confie, depois do inverno vem a primavera.
Com os defeitos que são muitos da representação política. Com as debilidades que são muitas da participação social. Com as incertezas que os projetos de transformação carregam no bojo e as cicatrizes de épocas sombrias. Com os sonhos juvenis que agora aparecem em selfies de cabelos brancos. Com a alegria dos quilombolas que já choraram as cataratas do Iguaçu, vencemos em 30 de outubro passado 500 anos de injustiças que ecoavam das usinas de canas-de-açúcar, cafezais, minas, charqueadas. Avançamos – tomados de la mano, hermanos.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul