Sinais trocados: Petrobras X Ibama.
O governo terá que criar um organismo responsável pela elaboração do plano dedescarbonização da economia brasileira, particularmente no que se refere ao uso decombustíveis fósseis.
O artigo “Ibama x Petrobras” que circulei há uma semana, gerou pedidos de
esclarecimento sobre vários pontos, que passo a tratar.
A primeira dúvida diz respeito ao volume das reservas de combustíveis fósseis e a
expectativa do seu esgotamento.
Comecemos por clarear o que são estes combustíveis fósseis e o peso de cada tipo no
mercado mundial.
Existem vários tipos de petróleo, sendo que até hoje o mais utilizado no mundo é o
chamado convencional, que representa ainda cerca de 75% da oferta de todos os
combustíveis líquidos, cerca de 75 milhões de barris por dia (Mb/d). Este é o petróleo
explorado em terra firme ou em águas rasas, extraído dos poços pela própria pressão
existente nestes reservatórios. Trata-se de um óleo de densidade média, nem muito
leve nem muito pesado e a grande maioria das refinarias do mundo está concebida
para trabalhar com esta matéria prima.
O petróleo dito não convencional é do tipo mais pesado, como o da Venezuela e o
extraido das areias betuminosas do Canadá ou mais leve, como o das águas
ultraprofundas do pré-sal das bacias do litoral brasileiro. O petróleo pesado representa
hoje 7% da oferta total de combustíveis fósseis líquidos (7 Mb/d). Já o pré-sal
representa menos de 2% da oferta total.
Existem alternativas para estes combustíveis que estão sendo intensamente exploradas
desde 2008. A mais importante é o que se chama de shale gas, ou gás de xisto, cujo
maior produtor no mundo, de longe, são os Estados Unidos. O gás de xisto representa
hoje 10% da oferta total (10Mb/d). Muito secundariamente, há a alternativa dos
biocombustíveis, hoje essencialmente o etanol de cana ou de beterraba e o biodiesel a
partir de leguminosas como a soja, a palma (dendê) ou a colza. Eles representam perto
de 3% da oferta (3 Mb/d).
Como escrevi no texto anterior, o pico de produção do petróleo convencional em todo
o mundo ocorreu entre 2006 e 2008. Desde então a oferta estabilizou-se neste nível
oscilando entorno do pico. De lá para cá o aumento constante da demanda vem sendo
atendido com o crescimento da oferta de petróleo não convencional, do shale gaz e
dos biocombustíveis.
Segundo os mesmos geógrafos que estimaram a data do pico para o petróleo
convencional, o pico de todas as fontes de combustíveis líquidos será alcançado até
2030, sendo que há uma possibilidade não desprezível dele ser antecipado para 2025
devido à queda dos investimentos em todos os tipos de petróleo no período de
recessão mundial provocado pela pandemia de COVID.
Não vou repetir o que já foi dito no outro artigo, só lembrar que o esgotamento das
reservas se dá pela crescente dificuldade de se encontrar novas jazidas, mesmo com
equipamentos de ultimíssima geração esquadrinhando terra e mar várias vezes e com
precisão de até um metro, mesmo em altas profundidades. Novos poços são raros e
são muito menores do que os descobertos até 1960. Em geral eles estão localizados
em locais com enormes dificuldades de acesso, como é o caso do pré-sal, ou as bacias
do mar do Norte e do Golfo do México.
O petróleo obtido nestas condições, é mais caro para localizar, para explorar e para
refinar, na maior parte dos casos.
Estes custos mais elevados apontam para a maior ameaça devida ao ocaso do ciclo do
petróleo: antes, muito antes da produção começar a cair, os preços irão para as alturas,
como já ocorreu e vem ocorrendo com cada vez mais frequência.
Considera-se que com o petróleo acima de 150,00 dólares/barril estabelece-se uma
crise financeira mundial que fará 1930 e 2008 parecerem anos de bonança. Este valor
foi alcançado em 2008, por dois meses, para depois cair. Houve, certamente, um efeito
especulativo, mas a diminuição da oferta gerou aumentos brutais nos preços entre
2002 e 2008 passando de 19,00 para 130,00 dólares (na média do ano). A crise de
oferta foi debelada com o aumento da produção do petróleo não convencional e
combustíveis alternativos, mas a pressão altista nos preços foi retomada, agora devido
aos custos mais altos de produção e o baixo retorno do investimento energético destes
outros tipos de petróleo ou produtos alternativos.
Algumas observações que recebi afirmavam que a expectativa do pico reforça a lógica
de se perfurar no polêmico poço na costa do Amapá. Ou seja, se vai faltar é melhor ter
mais. Isto é ignorar os efeitos colaterais do uso de combustíveis fósseis no
aquecimento global, para não falar dos riscos para os ecossistemas marinhos da região.
Mais do que isso, significa prolongar a dependência da nossa economia deste insumo
em vias de se extinguir.
Um argumento mais defensável aponta para a utilidade de se usar este recurso em
extinção para financiar a transição para a sua substituição. Entretanto, sem um plano
muito concreto sobre os passos para se fazer esta substituição, acabaremos
conduzindo a nossa economia para o momento da crise de abastecimento provocada
pelo esgotamento das reservas e que seria brutal sem essa transição.
Não é uma política de substituição dos combustíveis fósseis que o governo está
apresentando. Ele apenas fala em energia verde, citando a eólica e a solar, como um
dos seus objetivos (genéricos). Isto não tem qualquer incidência sobre a diminuição do
consumo de gasolina e diesel. Por outro lado, o governo faz todo um auê para baixar os
preços dos combustíveis e propõe o lançamento de um carro popular. Ambas as
medidas vão na contramão de qualquer política de substituição do petróleo por outra
forma de energia.
É bom lembrar que a matriz de transportes no Brasil, tanto de pessoas como de cargas,
é mais de 80% dependente de gasolina ou de diesel, o restante sendo coberto pela
oferta de etanol e biodiesel. E substituir totalmente por biocombustíveis é uma total
impossibilidade, a não ser que se abandone a produção de alimentos ou que se
desmate em larga escala e mesmo nestas condições isto seria duvidoso. Carros
elétricos? Pode ser, mas os custos ainda são muito altos e já se considera que as
reservas mundiais de lítio não darão conta de substituir mais do que 1/4 da frota
mundial.
Um plano de conversão do uso de combustíveis fósseis teria que começar por analisar
a matriz energética do nosso sistema de transportes e adotar uma solução radical para
diminuir o impacto da rarefação e desaparição deste insumo. Vai ser imprescindível o
adeus aos carros individuais, a não ser para funções e situações bem definidas. Vai ser
preciso investimento pesado em infraestruturas coletivas de transporte urbano e
interurbano (metrôs, trens, ônibus elétricos). E transformar o sistema de transporte de
cargas, hoje centrado em caminhões substituindo-os por trens, hidrovias e cabotagem.
O investimento nesta transformação radical dos transportes vai ser alto e entra em
concorrência com o investimento em encontrar e explorar novos poços de petróleo.
Lembremos que entre os testes, montagem de infraestruturas, perfuração e extração
de petróleo podemos contar com pelo menos uma década, quando a crise de
abastecimento de combustível já deve estar instalada. Onde a Petrobras deve investir
seus pesados lucros? Em comprar de volta a Petrobras distribuidora? Em comprar de
volta as refinarias quase doadas por Temer e Bolsonaro? A meu ver ela não deve
investir naquilo que está fadado a ficar sem uso em tempo muito mais curto do que
este investimento se amortizaria.
Pode-se argumentar que não cabe à Petrobras financiar a transição energética, já que
ela é uma empresa de petróleo e que seus acionistas estão preocupados com os lucros
e não com esta transição. É verdade, mas o governo é o principal acionista da
Petrobras e pode buscar uma redefinição legal do escopo da empresa. De toda forma,
pelo menos a parte da distribuição dos lucros que corresponde às ações
governamentais pode ser empregada como o governo achar melhor.
O governo terá que criar um organismo responsável pela elaboração do plano de
descarbonização da economia brasileira, particularmente no que se refere ao uso de
combustíveis fósseis. Um plano emergencial, com etapas e metas bem definidas, assim
como as medidas concretas a serem implementadas, é uma necessidade urgentíssima
que deveria ser assumida, possivelmente, pelo BNDES junto com o MMA.
Enquanto este plano não estiver formulado e posto em prática, medidas cautelares
terão que ser tomadas para ir diminuindo a dependência dos combustíveis fósseis. O
principal, ao alcance do governo, é o aumento dos preços do diesel, da gasolina e do
gás. Exatamente o oposto do que o governo está fazendo. O argumento dos
economistas e dos políticos é que isso vai ter impacto na inflação e empobrecer os
mais ferrados. Para evitar este efeito é possível subsidiar determinadas atividades: o
transporte público de passageiros, os ônibus urbanos e interurbanos, taxis e aplicativos
pagariam preços mais baixos, assim como o transporte de cargas, e o maquinário
agrícola. Os carros de uso individual pagariam a tarifa cheia. Lembro que estes
subsídios têm entrar no plano de transição com prazo para serem abandonados.
Investimentos em infraestruturas de transportes coletivos teriam que ser estimuladas
com fortes financiamentos públicos, visando ampliar a malha urbana de trens, ônibus
elétricos e metrôs e a malha nacional de trens, hidrovias e navegação de cabotagem
com vistas a eliminar ou reduzir muito o transporte por caminhões.
O uso de gás de cozinha também deverá ser subsidiado para os consumidores mais
pobres e não através de um subsídio às empresas distribuidoras, que beneficiariam
tanto os mais ricos como os mais pobres. O plano de substituição do gás deveria incluir
o financiamento da ampliação da oferta de energia elétrica e a substituição dos fogões
a gás por fogões elétricos, subsidiados para os mais pobres. Obviamente, vai ser
preciso estimular a produção nacional em larga escala deste tipo de equipamento.
A produção de automóveis de uso individual deveria ser fortemente induzida na
direção da produção de veículos de baixo consumo de combustíveis, eliminando-se os
modelos SUV. Isto enquanto não avança a produção de autos elétricos e a
infraestrutura para abastecimento. Não acho que seja possível se ater a soluções de
mercado, onde quem tem dinheiro circula em carros elétricos individuais e quem não
tem circula de trem, metrô ou ônibus elétrico. Os poderes públicos têm o dever de
limitar o uso de carros individuais, mesmo que elétricos, mas também têm a obrigação
de favorecer a criação de um excelente sistema de mobilidade urbana e interurbana.
Outro ponto levantado por leitores do artigo anterior é sobre a diferença de datas
entre os picos de produção e o momento em que começa a diminuir a oferta.
Como já escrevi, o pico da produção nos Estados Unidos em 1970 ou o pico mundial
em 2008 não implicaram em quedas imediatas da oferta de petróleo convencional e
isto deve se repetir quando do pico de produção de todos os tipos de combustível
líquido, entre 2025 e 2030. Se a produção for mantida no nível dos picos adia-se o
momento em que ocorrerá a queda, mas quando ela vier ela será abrupta e tão mais
abrupta quanto maior for o prolongamento da produção no seu máximo. Ao contrário,
se as reservas passarem a ser poupadas, com diminuição paulatina da oferta ano a ano,
haverá mais tempo para se proceder a uma substituição planejada de gasolina e diesel
por energia de outras fontes, sustentáveis de preferência.
As empresas de petróleo apostam na venda de seu produto !até a última gota” e estão
pouco ligando para os efeitos catastróficos de uma queda abrupta da oferta. Várias
entre elas estão adotando uma política de restrição nos investimentos em novos poços,
dados os altíssimos custos destas fontes residuais, preferindo explorar até o fim as
reservas do petróleo já em produção. E estão investindo em fontes alternativas para
quando vier a implosão do ciclo do petróleo. Pode ser uma boa estratégia para manter
os lucros, mas o preço para a humanidade será fatal, quer pelo impacto brutal de uma
transição abrupta na economia mundial, quer pelo efeito estufa das emissões de gases
durante esta etapa final do uso dos combustíveis fósseis.
Outros leitores protestaram contra a ideia de não se explorar uma riqueza já
identificada e que pode trazer muitos recursos para o país. É ignorar que o petróleo
tem outros usos, com menores impactos sobre o meio ambiente e sobre o
aquecimento global. Com efeito, lembremos que um quarto de todo o consumo do
petróleo não é voltado para o uso como combustível, mas como matéria prima de
várias indústrias (petroquímica, farmacêutica, plásticos, vestuário e dezenas de outras)
que são importantíssimas no mundo de hoje. Queimar todas as reservas como
combustível não só vai paralisar os transportes no momento do esgotamento, mas
também paralisar um amplo parque fabril.
Houve quem achasse que a minha avaliação do que pode ocorrer no mundo no
momento de uma queda brusca na oferta de petróleo é “catastrofista”. Apontei para a
possibilidade de guerras pelas reservas finais, com os países mais poderosos
militarmente se apropriando de fontes localizadas em países mais fracos. Mas é fácil
imaginar a reação dos Estados Unidos, por exemplo, quando os poços começarem a
secar. A tentação de usar da força para garantir um prolongamento da oferta de
combustível para os carros dos americanos vai ser grande e os primeiros alvos serão a
Venezuela e o Brasil. E os países do Oriente Médio e da África, onde os EUA teriam que
disputar com os europeus, que não têm petróleo em seu território. A Rússia também
seria tentada a reocupar países da antiga União Soviética com reservas petrolíferas. E o
que vai fazer a China, cuja produção e reservas nacionais é totalmente insuficiente para
a imensa demanda das suas indústrias e do seu sistema de transportes? É o desenho
de um mundo de alta instabilidade e com riscos enormes de um conflito geral, pois
todos vão ficar com o dedo no gatilho, disputando as últimas reservas para uso
nacional.
Para alguns leitores, esta análise é contraditória com aquela em que aponto para uma
crise financeira gigante antes mesmo que comece a queda abrupta da oferta de
petróleo. Apontou-se para o fato de que a crise financeira que anunciei implicaria em
uma recessão mundial, e isto diminuiria a demanda de petróleo e provocaria uma
queda nos preços. Isto esticaria o prazo para a exploração das últimas reservas. A
observação é correta, mas só significa que se estenderia o prazo e não que a crise seja
evitada. E o preço a pagar seria brutal, sobretudo para os países mais pobres em
capital e em recursos naturais.
O prolongamento do uso do petróleo como combustível será sempre o pior dos
mundos, pois está muito claro que, se as reservas atuais forem exploradas !até a última
gota”, o mundo vai se aquecer muito acima dos 1,5º C a mais, tido como o limite a
partir do qual este processo sai de controle e passa a se retroalimentar.
1,5º C a mais já está garantido até 2030 e provavelmente antes desta data. Os 2º C
devem ser atingidos antes de 2050 e os 3, 4 ou 5º C a mais deverão ser atingidos ao
longo da segunda metade do século, se nada for feito imediatamente e radicalmente.
Segundo os cientistas do IPCC, um aumento de 2º C destruirá a civilização tal como a
conhecemos e os outros aumentos tornarão o planeta Terra insuportável, com a
provável extinção dos Homo Sapiens (nem tão sapiens assim) e até da maioria das
formas de vida.
Frente a este imenso risco, permitir que o lucro de alguns se sobreponha ao interesse
de toda a população mundial chega a ser um suicídio. Mas é isso que os governos de
todo o mundo estão fazendo, sob pressão do poderoso lobby da indústria petroleira. É
o que estamos assistindo aqui mesmo, com o governo embarcando na estratégia de
expandir o uso e pesquisa de petróleo sob a égide da consigna !o petróleo é nosso”.
Este nacionalismo não é só grotesco, ele é sinistro
Jean Marc von der Weid – ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971, Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983, Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016, Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.