Eu, O Dinheiro
Eu sou O Dinheiro. Tenho sido um componente-chave da sociedade humana desde 5.000 a.C. Se eu ruir, devido à inverossímil hipótese de Kai-Fu Lee, especialista em Inteligência Artificial (IA), e Chen Qiufan, autor de ficção científica, no livro “2041: Como a inteligência artificial vai mudar sua vida nas próximas décadas” (Rio de Janeiro: Globo Livros, 2022) de tudo passar a ser gratuito, junto comigo irão abaixo muitos pilares da sociedade humana. Por isso, quero crer: sou imortal!
Ah, podem alegar eu estar morto e enterrado na Argentina. Isto porque uma moeda estrangeira usurpou a função de reserva de valor. Nas grandes compras, serve também como unidade de conta. Mas na hora de ser convertida em meio de pagamento, dada a disparidade de sua cotação no mercado paralelo de dólar, os preços disparam em uma hiperinflação na moeda local, única aceita legalmente como poder liberatório de dívidas.
Daí apenas a moeda capaz de exercer essas funções ao mesmo tempo se revestem do meu caráter. Outras são “dinheiro parcial”, mas não plenamente eu, O Dinheiro.
Sou amplamente aceito em transações comerciais para comprar bens, serviços e liquidar dívidas. Como meio de troca, facilito a compra e venda de bens e serviços, enquanto como unidade de conta, forneço uma medida comum de valor para comparar preços. Como reserva de valor, permito as pessoas me armazenarem para uso futuro.
Apesar de tudo isso, ficcionistas pseudocientíficos, pois não têm conhecimento profundo da minha Ciência Econômica, dizem “o dinheiro, na verdade, é a ficção inventada e contada pelos humanos com o maior sucesso porque é a única ficção na qual todo mundo acredita”. Ora, eu sou uma ficção?! Eu sou o Real!
Como posso ser fruto de uma narrativa ficcional, inventada e espalhada de maneira a convencer milhões de humanos a acreditar nela? Por séculos, todos buscaram me acumular em busca de segurança e sobrevivência.
Sou também um símbolo de status social, não nego. Sou capaz de propiciar respeito, bem como vaidade. O desejo por mim é, com frequência, insaciável e leva à ganância, mas também oferece um senso de propósito.
Eu me tornei um ingrediente-chave em toda a hierarquia social e meu impacto emocional se tornou profundamente entranhado na inteligência humana depois de milhares de anos dessa narrativa. Não posso ser desprezado e eliminado de uma hora para outra, sequer é possível um plano gradual a longuíssimo prazo com o intento de me assassinar, porque a maioria me defenderá “com unhas e dentes”!
Meu surgimento remonta a milhares de anos, quando as sociedades começaram a abandonar a autossubsistência com sistemas de trocas diretas e adotaram divisão de trabalho e minhas diversas formas como meio de facilitar as transações de mercadorias. Minhas primeiras formas possuíam valor intrínseco, como gado, grãos, conchas e metais preciosos como ouro e prata. Mais recentemente, virei digital, mas advirto: as criptomoedas não atuam em todas as minhas funções!
A utilização de metais preciosos para me representar foi particularmente comum em muitas civilizações antigas, devido às suas características duráveis, divisíveis e universalmente reconhecidas. Moedas metálicas padronizadas, cunhadas com símbolos de governos ou autoridades, aumentou minha verossimilhança, facilitando ainda mais o comércio e as transações financeiras.
Ao longo do tempo, evolui para incluir formas mais abstratas, como papel-moeda representando uma promessa de pagamento em metal precioso. Com o advento da tecnologia moderna, tornei-me digital. Agora, a IA quer usurpar o meu lugar!
Esse maléfico plano tenta me reinventar, gradualmente, e ao mesmo tempo lidar com as mudanças trazidas pela plenitude e pelas mudanças no trabalho causadas pela automação, fornecendo aos cidadãos todas as necessidades básicas e ajudando-os com treinamento diante seus deslocamentos de empregos pela IA. O projeto tem três componentes: o CBV, a pulseira IA e, depois, um programa inventado pelo movimento civil pró Felicidade Geral.
O primeiro seria o Cartão Básico de Vida (CBV) para alcance de serviços básicos universais. Diferentemente da Renda Básica Universal (RBU), o CBV ofereceria a seus portadores créditos só possíveis de ser trocados por serviços capazes de suprir as necessidades básicas e permitir uma vida confortável.
Os créditos do CBV poderiam ser usados apenas para comida, água, moradia, energia, transporte, roupa, comunicação, saúde, informação e entretenimento. Essa limitação da troca seria importante porque imputam a mim, injustamente, a responsabilidade pelo abuso de álcool e opioides por parte dos desempregados!
O segundo componente do plano dos engenheiros da computação, desconhecedores da Ciência Econômica, é uma nova “moeda”, pensada para ajudar as pessoas a seguirem para o próximo nível da hierarquia social por meio de amor e pertencimento, exemplificados em afeto, amizade, empatia, companheirismo, confiança e conexão. Diferentemente de mim e do CBV, amor e pertencimento não podem ser gastos.
Comigo, quanto mais você gasta, menos você tem. Mas com amor e pertencimento, quanto mais você dá, mais você tem. Sua pulseira escutaria e sentiria o bem-estar emocional das pessoas à sua volta – e com isso mais brilharia.
Então, não seria uma pulseira, mas sim uma coleira subordinada à IA! Escravizaria os humanos de modo a agradar os demais de forma ritualística! Prefiro minha impessoalidade nas relações entre humanos com conflitos de interesse…
Os arquitetos do programa querem incentivar as pessoas a acumular mais simpatia e viver a vida com mais propósito, cheias de amor e pertencimento, tornando-as cada vez mais empáticas e capazes de compaixão, pontuando-as de modo a mostrarem aptas a empregos em serviços de cuidadoras. Mas os arquitetos da escolha ignoraram a necessidade das pessoas em saciar sua vaidade por meio da acumulação não de mim, mas sim de “likes”!
A ganância por mais “likes” faria as pessoas burlarem o sistema, convencendo, ameaçando ou conspirando para coisas boas serem ditas perto da pulseira, de modo a ganharem mais aceitação social em serviços exigentes de conexão humana. O cinismo social não predominaria?
O terceiro e último componente do projeto de minha eliminação seria a IA aprender a medir a felicidade das pessoas. Os cientistas atuantes como arquitetos da escolha construiriam uma IA para reconhecer o senso de respeito, conquista e autorrealização das pessoas. Pressupõem essas virtudes trazerem a felicidade geral da Nação, senão de toda a população do Planeta!
Embora ideias específicas a respeito da minha evolução futura sejam ainda especulativas, espero ter convencido você dessa ideia “com a plenitude precisaremos desenhar um novo mundo” não passa de mais uma “boa fé” imposta. Conforme o novo modelo econômico abandone a ideia de escassez e me elimine, os ficcionistas o ditam ser reinventado para elevar as necessidades humanas, como amor e pertencimento, estima e realização pessoal, ao máximo para todos.
Primeiro, chegar à plenitude exige uma revolução financeira completa. Todas as instituições financeiras, inclusive bancos centrais nacionais e mercados de ações, precisarão ser substituídas. O desaparecimento da escassez causará deflação – ninguém nada comprará sempre na espera de preços mais baixos –, levando ao colapso dos preços e, posteriormente, dos mercados e das fontes de renda.
Os ficcionistas imaginam ser possível a distribuição gratuita de bens e serviços e a transição para um modelo econômico subordinado às necessidades humanas – e não à ganância humana. O problema sistêmico é as corporações se recusarem a aceitar o fim das cartas-patentes, das posses de recursos naturais e da escassez.
Historicamente, sempre quando a produção de bens se tornou barata, a preferência das corporações oligopolistas não foi por altruisticamente baixar os preços. Em vez disso, criaram uma escassez artificial, inclusive via propaganda, para perpetuar seu lucro. Isso acontece há séculos.
Finalmente, a transição para a plenitude requer uma revolução social bem-sucedida. A luta de classes seria substituída pela luta da IA contra a IH. A inteligência das máquinas ultrapassaria a inteligência humana — e a IA tomaria dos humanos o controle do mundo. Eu perderia esse controle. Snif, snif…
Sem mim, ela se tornará uma superinteligência artificial? Substituirá a criatividade nas artes e nas ciências? Ou o pensamento estratégico, o raciocínio e o pensamento adversativo? Ou a compaixão, a empatia e a confiança humana? Ou a consciência e suas necessidades conjuntas, desejos e emoções? Tudo isso ocorrerá sem a motivação de me receber?!
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.