Combate à inflação: aparência e essência
Copom e FMI formam uma unidade aplaudida, dentro e fora do país, por sua eficiência em manter nosso crescimento medíocre.
Por César Locatelli
Todos somos contra a inflação. Verdade que nosso país, em outras épocas, privilegiava o crescimento. Teve certo sucesso: o país virou até exemplo para chineses e coreanos que nos visitavam para procurar descobrir nossos segredos para o rápido e consistente crescimento. Concomitantemente, cometeu pecados indesculpáveis.
Entre os desacertos econômicos do regime autoritário de então, estava a ação governamental para desequilibrar o jogo em benefício do time do capital. Desemprego, carestia, fome e desesperança manchavam o tal “milagre econômico”. Terra, renda e riqueza só faziam se concentrar em pouquíssimas mãos.
A inflação preocupava, mas não era a prioridade. Além do que foram criados vários mecanismos para tentar regular a corrida entre preços e salários. Não é necessário salientar que o juiz beneficiava a concentração. O bolo, entretanto, crescia e com isso a ilusão de que uma hora começaria a ser dividido. Constituiu-se e ampliou-se, é fato, um número não desprezível de empregos médios nesses anos. O sofrimento da maioria, contudo, não se alterou.
Outro grave engano foi financiar o salto industrial com dólares emprestados a taxas de juros variáveis. Conseguimos comprar os bens e serviços de consumo e investimento que necessitávamos. Lembremos que não produzíamos nada de petróleo e a Opep estava firme no comando dos preços. Quebramos quando veio a decisão norte-americana de jogar os juros na lua. Fomos expulsos do jogo por cerca de vinte anos.
Como não há mal que sempre dure, conseguimos redemocratizar país. Talvez seja mais preciso dizer que conseguimos voltar a ter eleições regulares. E voltamos ao jogo, após extensa renegociação da dívida externa e anos de submissão às políticas contracionistas do FMI. Estudos recentes, do próprio Fundo, comprovam os efeitos devastadores, para o crescimento e o emprego, das políticas exigidas para financiar países endividados. O Fundo nos colocava de joelhos para então nos ajudar a sair dos enroscos da inadimplência. Ao acumular, nos governos Lula e Dilma, reservas internacionais, hoje na casa dos 340 bilhões de dólares, nos livramos da sujeição infesta do Fundo.
Quando voltamos, porém, o jogo era outro, as regras haviam sido alteradas. Todo mundo, ou quase, tinha sido convencido que o importante era debelar o monstro inflacionário. E mais, que o principal prejudicado pela inflação era o trabalhador. Armamos nossas barricadas contra o monstro. Abrimos as fronteiras para bens e grana importados, o que acabaria com o privilégio de reservas de mercado de produtores nacionais e seus preços escorchantes. Retiramos proteção dos próprios trabalhadores no sonho de que isso criaria empregos. Privatizamos empresas achando que desoneraríamos a população dos custos de empresas estatais de baixa eficiência. Et cetera.
Esse resumo tosco, do que se convencionou chamar de neoliberalismo, nos traz aos dias de hoje. Nosso último PIB é praticamente igual ao de 10 anos atrás. Nosso mercado de trabalho deixa de fora um em cada 5 trabalhadores (a mais recente taxa composta de subutilização da mão de obra foi 18,5%). Voltamos ao mapa da fome das Nações Unidas. E o Banco Central mantém, há oito meses, uma taxa de juros que faz nosso país gastar mais de 600 bilhões de reais por ano (os juros nominais, em doze meses até janeiro, alcançaram R$621,0 bilhões ou 6,26% do PIB). Os efeitos dessa política têm produzido resultados questionáveis sobre a inflação. Gastamos um caminhão de dinheiro e a inflação segue na média dos últimos vinte anos.
Nesse momento, precisamos lembrar que a razão principal de termos políticas econômicas, ao menos aquela razão presente nos discursos, é buscar melhoria de bem-estar para a população. Assim, é certo que cuidar da inflação protege os salários, O que não é certo é fazer isso às custas do emprego. O que não é certo é puxar o freio do crescimento de um país que não cresce consistentemente há anos. O que não é certo é disseminar o medo do risco fiscal, que é o que faz a diretoria do Banco Central em todas suas comunicações, e gastar 6% do PIB em juros.
Na aparência, o combate à inflação protege a população. Na essência, esse combate, que se dá exclusivamente pela taxa de juros de um dia, concentra renda (621 bilhões de reais foram para os bolsos daqueles que tem recursos sobrando para emprestar ao governo), destrói empregos, inibe investimentos e constrange a execução de políticas sociais.
O Comitê de Política Monetária do Banco Central na aparência cumpre o papel de protetor da moeda brasileira. Na essência age como o FMI naqueles anos em que nos subjugava. Copom e FMI formam uma unidade aplaudida, dentro e fora do país, por sua eficiência em manter nosso crescimento medíocre.