Liberalismo Filosófico X Identitarismo
O significado dos termos políticos, incluindo “liberal”, evolui em diferentes contextos. No cenário político norte-americano contemporâneo, esse termo está associado a políticas progressistas em questões como saúde, educação, direitos civis e justiça social.
Nos Estados Unidos, a designação da ideologia política é um tanto confusa quando comparada à de outros países. Por exemplo, o liberalismo lá é associado a centro-esquerda ou até mesmo à esquerda, ao contrário de outros lugares onde o termo “liberal” é associado a ideias mais próximas do centro ou mesmo de centro-direita.
Lá, o “liberalismo”, historicamente, esteve associado a ideias progressistas e reformistas. Durante a Era do New Deal, na década de 1930, os “liberais” eram identificados com políticas de intervenção do governo para combater a Grande Depressão e promover o bem-estar social.
Essa tradição liberal continuou a se desenvolver, nas décadas seguintes, com um foco em questões sociais, direitos civis e políticas sociais. O espectro político nos Estados Unidos, então, é percebido como inclinado para a direita em comparação com outras democracias ocidentais, mas lá os liberais seriam de centro-esquerda em outros países.
O significado dos termos políticos, incluindo “liberal”, evolui em diferentes contextos. No cenário político norte-americano contemporâneo, esse termo está associado a políticas progressistas em questões como saúde, educação, direitos civis e justiça social.
As ideias políticas e os rótulos variam – e não há uma única definição universalmente aceita para termos como “liberal”. Esse termo tem diferentes conotações, dependendo da região local ou global, além da orientação política de quem o está utilizando.
O liberalismo, hoje em dia, é muito difamado tanto pela esquerda como pela direita. Mas, na verdade, os seus ideais clássicos continuam a ser os mais democráticos e as instituições inspiradas nele são responsáveis por grande parte do progresso moral e material realizado pelo mundo ao longo dos últimos três séculos.
Essa é a opinião defendida por Yascha Mounk, em seu livro, The Identity Trap: A Story of Ideas and Power in Our Time [“A armadilha da identidade: uma história de ideias e poder em nosso tempo”], escolhido como o Melhor de 2023 por The Economist, Financial Times e Prospect Magazine. Acha o caminho para a construção de um futuro justo está na determinação de implementar mais plenamente os princípios liberais.
Desde o início da Era do identitarismo, os seus defensores têm sido muito claros sobre quem consideram ser o seu principal alvo: os liberais. Supõem o compromisso liberal básico com o universalismo ser responsável pelo suposto fracasso das democracias em fazer qualquer progresso substantivo na oferta aos membros de grupos marginalizados de algum mínimo de igualdade – e sequer questionam a liberdade e a fraternidade.
Os liberais têm uma resposta convincente a isso? Os filósofos liberais dão uma resposta convincente à crítica identitária ao reafirmar os seus compromissos fundamentais.
Mounk oferece uma “reconstrução racional” da síntese identitária.
- A chave para compreender o mundo é examiná-lo através do prisma das identidades de grupo, como raça, gênero e orientação sexual.
- Valores supostamente universais e regras neutras serviriam apenas para obscurecer as formas como os grupos privilegiados dominam os marginalizados.
- Para construir um mundo justo, devemos adequar as normas e leis de como o Estado trata cada cidadão – e como os cidadãos se tratam uns aos outros – tornando-as dependentes do grupo de identidade ao qual pertencem.
Em resumo, para os identitários, normas como liberdade de expressão deveriam ser totalmente abandonadas, porque apenas encobririam o que realmente está a acontecer, ajudando a consolidar o poder dos privilegiados. As sociedades, segundo essa nova ideologia, jamais serão capazes de aplicar padrões neutros de uma forma imparcial.
A única solução identitária é rejeitar qualquer aspiração de viver de acordo com valores universais ou regras neutras. Implica em “pagar a dívida social histórica”, simplesmente, invertendo a injustiça: agora é hora de beneficiar e/ou privilegiar os descendentes dos antes racialmente discriminados, além do gênero feminino e de outras opções sexuais!
Quando o identitarismo é comparado com versões caricaturais de ideologias universalistas, como o liberalismo, ou com as muitas maneiras pelas quais a realidade empírica fica aquém das nossas aspirações, ela parece ser muito atraente. Mas o liberalismo tem respostas coerentes a estas ideias colocadas no debate público.
Para Mounk, as respostas do liberalismo filosófico devem levar a sério as críticas bem fundamentadas às injustiças passadas (e persistentes) e, ao mesmo tempo, oferecerem um caminho mais construtivo para avançar. Devem reconhecer a grande importância desempenhada pelos marcadores de identidade de grupo, no mundo real, sem considerá-los a chave de toda a vida cultural e política.
Devem ter cuidado com a crítica generalizante de todas as instituições favorecerem os poderosos, reconhecendo a capacidade dos valores universais e das regras neutras para aproximar as sociedades do tratamento de todas as pessoas, de fato, como iguais. Enfim, devem encorajar-nos a viver de acordo com os ideais nos quais se baseia a democracia liberal, em vez de os abandonar, porque inevitavelmente as alternativas totalitárias serão muito piores de acordo com as experiências históricas já vistas ou sofridas.
Na verdade, a resposta liberal à síntese da identidade pode ser resumida na forma de uma reafirmação dos seus três postulados centrais de forma qualificada por valores universais e regras neutras.
- Para compreender o mundo, devemos prestar atenção a um mais amplo conjunto de categorias, não limitado a formas de identidade de grupo como raça, gênero e orientação sexual.
- Na prática, os valores universais e as regras neutras excluem muitas vezes as pessoas, de forma injusta, mas a aspiração de as sociedades cumprirem esses padrões permitir-lhes fazer progressos no tratamento justo dos seus membros.
- Para construir um mundo mais justo, as sociedades devem esforçar-se por corresponder às suas aspirações universalistas, em vez de as abandonar.
As identidades com as quais nascemos não são tudo. Na realidade, os grupos mais salientes foram formados com base em categorias negligenciadas pelos defensores do identitarismo: categorias socioeconômicas (como classe), teológicas (como crenças) e ideológicas (como patriotismo).
Tudo isto torna os liberais filosóficos, como Mounk, céticos em relação a qualquer concepção de o realmente importante nos assuntos humanos se concentrar em uma única dimensão. Outras categorias, desde a classe socioeconômica até à ideologia política, são igualmente importantes. Exigem um conjunto muito mais amplo de considerações.
A auto concepção de uma sociedade ajuda a estruturar algumas das suas instituições fundamentais: restringir eventuais ações autoritárias dos seus governantes e dar aos dissidentes e ativistas canais para expressar as suas queixas. E lutar por elas!
Logicamente, as democracias liberais contêm pessoas e grupos poderosos em busca de servir somente aos seus próprios interesses. Os seus privilégios violam os princípios liberais, inclusive professados em seus discursos ou de seus ideólogos.
Os liberais deveriam rejeitar a conclusão, central para os identitários, destes valores universais e regras neutras serem apenas uma “cortina de fumaça” para sustentar os privilégios da maioria opressora. Na verdade, o compromisso democrático liberal com valores universais como a liberdade de expressão e as regras neutras, além das proibições de discriminação racial, inspirou o progresso nos últimos três séculos.
Como resultado, praticamente todas as democracias tornaram-se muito mais diversificadas no topo, com mulheres, imigrantes, minorias sexuais e membros de grupos étnicos historicamente marginalizados mais propensos a serem profissionais bem-sucedidos diante do ocorrido no passado. Evidentemente, isso não obscurece o fato de uma percentagem significativa de afrodescendentes continuarem a sofrer de pobreza extrema, viverem em bairros desfavorecidos e não terem acesso a escolas de alta qualidade. A luta contra estas injustiças persistentes é urgente.
Mounk compreende, perfeitamente, por qual razão enfatizar esses progressos incômodos aos identitários. É mais fácil sugerir a única motivação dos defensores desse progresso seria minimizar as injustiças persistentes. Mas, para obter uma visão precisa da realidade, ela não pode ser totalmente otimista nem cinicamente pessimista.
Na verdade, uma avaliação precisa dos últimos cinquenta anos sugere o esforço para viver de acordo com valores universais e regras neutras ser capaz de trazer enormes melhorias. É falso (e injusto com os ativistas da geração 68 ou baby-boomer) afirmar não ter havido progresso político, social e econômico!
Mounk reconhece não bastar a defesa “da boca para fora” dos valores universais e regras neutras. Continuar o progresso não reside em abandonar o liberalismo, mas sim em redobrar os esforços para viver de acordo com os seus ideais animadores da luta social.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.