Financismo: austeridade para quem?
Não existe nenhum exagero em se afirmar que boa parte dos problemas econômicos e sociais que o Brasil tem vivido ao longo dos últimos anos encontram no chamado “Novo Regime Fiscal” (NRF) uma de suas causas principais. Esse eufemismo foi concebido por Henrique Meirelles e sua equipe logo depois da consumação do “golpeachment” perpetrado contra Dilma Roussef em 2016. Com o afastamento da presidenta, Michel Temer aboletou-se rapidamente para ocupar o cargo – usurpado ao arrepio da legalidade e da constitucionalidade – no Palácio do Planalto.
Assim, no apagar das luzes daquele ano, no dia 13 de dezembro, o Senado Federal aprovou em segundo turno a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 55, concluindo a tramitação que já havia sido iniciada anteriormente na Câmara dos Deputados. A partir de então, o texto da nossa Carta Magna passava a incluir a Emenda Constitucional (EC) n 95. O NRF nada mais é do que uma forma mais “elegante” de tratar da política do teto de gastos. De acordo com o texto, aprovado no mesmo dia em que a ditadura militar havia promulgado o AI-5 em 1968, o governo federal fica proibido de promover qualquer elevação no nível das despesas orçamentárias observadas no exercício de 2016 durante vinte longos anos. Uma loucura!
Pelo disposto no texto, a única correção possível de ser efetuada nos gastos primários seria a aplicação do índice de inflação relativo ao período anterior. Assim, não importaria se houvesse aumento da arrecadação ou se surgisse alguma necessidade emergencial a ser atendida. Os únicos itens de gastos que não estavam sob essa restrição de crescimento eram as rubricas financeiras. Ou seja, os valores atribuídos a pagamento de juros da dívida pública poderiam aumentar sem nenhum problema. Já as despesas com previdência, saúde, assistência social, pessoal, saneamento e outras estariam congeladas por duas décadas.
Teto de gastos: Brasil na contramão.
Essa proposta veio se somar ao elenco das jabuticabas que o Brasil tem a oferecer ao resto do mundo. É impressionante como nossas elites não sentem a menor vergonha em apresentar esse tipo de desastre como sendo um arremedo de solução para nossos problemas econômicos. Afinal, não faz o menor sentido impedir que o Estado seja chamado a recuperar seu protagonismo na esfera da economia, em especial nos momentos de crise. Essa havia sido, aliás, a linha adotada pelos governos dos países mais desenvolvidos do capitalismo a partir da eclosão da crise financeira de 2008/9. Ao invés do Estado mínimo, por lá o caminho foi o da expansão dos gastos públicos e do aumento da presença governamental na seara da economia.
Mas o financismo tupiniquim pensa diferente e tem outras estratégias para viabilizar o crescimento de seus ganhos fáceis e parasitas, de forma absolutamente desconectada de qualquer atividade produtiva. Ao martelar de forma insistente na necessidade de se apertar ainda mais o ferrolho da austeridade fiscal irresponsável, o sistema financeiro ocupa todos os espaços nos grandes meios de comunicação para criar o clima de catástrofe anunciada, caso não seja reduzido o volume de gastos públicos no País. Esse mantra criminoso contra toda e qualquer elevação no sacrossanto “índice de endividamento” ignora as reais necessidades da maioria da população. A necessidade de arregimentar recursos para combater a pandemia do covid 19, o retorno do Brasil ao mapa do fome, a explosão dos indicadores de miséria e outros aspectos dramáticos da nossa profunda crise social pouco importam para pessoal.
No entanto, o financismo jamais deixa de revelar de forma escancarada suas preferências políticas e ideológicas. Caso seja necessário introduzir alguma pitada de pragmatismo em sua cruzada em prol da redução do Estado e em defesa de um fiscalismo extremado, então seus escribas favoritos são chamados a elencarem argumentos oportunistas e casuístas em defesa de alguma flexibilização observada. No entanto, que isso fique bem claro, essa desculpa toda só é válida se o comando da economia estiver nas mãos de algum aliado e pessoa de sua total confiança. Esse é o caso, obviamente, da dupla Paulo Guedes & Bolsonaro, grandes responsáveis pelo quadro da desgraça generalizada em que nos encontramos nos tempos atuais.
Financismo não reclamou de Guedes.
É interessante registrar que em nenhum momento ao longo dos 4 anos deste desgoverno houve qualquer manifestação mais dura do povo do financismo para “denunciar” as tentativas do superministro da Economia de passar ao largo do teto de gastos. Mas vamos lembrar aqui que, em todos os exercícios do mandato que se encerra no final do ano Guedes, deu um jeitinho de executar despesas acima do que era previsto nas regras rígidas do NRF. No total, esse valor chegou a quase R$ 800 bilhões ao longo do quadriênio. Foram R$ 54 bi em 2019, R$ 508 bi em 2020, R$ 117 bi em 2021 e R$ 116 bilhões neste ano. Em cada caso havia uma justificativa para burlar o disposto na determinação contracionista introduzida na Constituição. Mas ninguém se levantou para acusar qualquer “licença para gastar” ou ameaça de quebra do País em cada uma destas inciativas sugeridas por Guedes.
Mas quando se trata de aprovar uma autorização para que o governo eleito consiga realizar alguns pontos mais emergenciais de seu programa de governo, aí tudo muda de figura. A chamada “PEC da transição” ainda nem foi apresentada ao Congresso Nacional em sua forma definitiva. Mas a berraria do financismo em favor de reforçar a austeridade não perde tempo nem espaço. A equipe de Lula aponta a correta e compreensível necessidade de retirar itens como elevação dos valores do auxílio emergencial, retorno do programa Farmácia Popular e previsão de aumento do salário mínimo do cálculo do teto. Nada mais justo e adequado, tanto em termos da urgência social como do impacto macroeconômico positivo. Mas como o governo não é de sua confiança, agora o financismo volta a recuperar o conceito da responsabilidade fiscal de forma despropositada, exatamente como não o fez em nenhum momento durante o reinado de Bolsonaro.
Austeridade: cobrança só vale para Lula.
Segundo o conceito de austeridade do financismo a ser aplicado ao período de Guedes, o fato de ele ter comandado o furo o teto por 4 anos consecutivos não é relevante. Segundo os especialistas de plantão, não havia ali nenhum sinal de irresponsabilidade fiscal ou gastança irresponsável. Talvez pelo fato de Paulo Guedes ser um cupincha da plena confiança do povo do sistema financeiro, tudo era justificado por necessidades imprevistas anteriormente. Até mesmo em favor da PEC do Desespero houve argumento encomendado sob medida, ainda que estivesse ali escancarado o objetivo oportunista e eleitoreiro de último minuto. Há quem diga que essa cara de paisagem do povo da finança tenha alguma relação com o seu desejo de que Guedes continuasse à frente da economia, com a reeleição de capitão.
Porém, já de acordo com o conceito de austeridade a ser aplicado ao Presidente eleito, bom aí a coisa toda muda de figura. A gritaria patrocinada pelo financismo se esgoela antes mesmo da posse de Lula e o valor previsto de R$ 200 bi para tornar exequíveis algumas promessas básicas de campanha é objeto de bombardeio permanente na grande imprensa. Convenhamos que coerência não é propriamente um atributo que possa ser aplicado a quem se move na lâmina entre defender seus interesses imediatos e militar em favor de um Brasil ainda mais desindustrializado, dependente, financeirizado e empobrecido.
Qualquer manual básico de macroeconomia, ainda que de viés conservador, nos ensina a respeito da importância de medidas anticíclicas, a serem adotadas pelos governos para se contrapor a situações de crise, desemprego e recessão. Estes seriam os momentos em que o Estado deveria, ao contrário do que prega o senso comum, aumentar os seus gastos. Pois o teto de gatos impede qualquer inciativa neste sentido. Ou seja, o NRF é um fator que permite a perpetuação da condição estagnacionista. Mas para o financismo, o que é importa é exigir sempre mais e mais austeridade. Em especial de um governo que promete “heresias”, tais como a recuperação do protagonismo do Estado, o fim do ciclo de privatizações, a retomada de um programa desenvolvimentista e a adoção de políticas de redução da desigualdade social e econômica.
Doutor em Economia e membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal.