“Financeirização”: Problema norte-americano?
Para uns economistas, a financeirização é vista como a descrição do processo pelo qual as trocas são progressivamente intermediadas por instrumentos financeiros. Possibilita bens, serviços e riscos serem prontamente trocados por moeda e facilita o necessário direcionamento de parte dos fluxos de renda para ativos (estoques de riqueza), correspondendo assim ao capitalismo financeiro desde sempre em todos os lugares…
Para outros, a financeirização é um fenômeno complexo, multifacetado, porque é emergente das interações de vários componentes, instituições e/ou agentes econômicos. Afeta as economias de diferentes países de maneiras distintas.
Talvez caiba falar em financeirização nos Estados Unidos, mas não no Brasil. A América tem um sistema bancário mais desconcentrado, com uma longa história de tentativas e erros com bancos locais “livres”, enquanto o Brasil tem um sólido sistema bancário concentrado nos big five bancos: Banco do Brasil, Caixa, Itaú, Bradesco e Santander.
Os mercados de capitais nos Estados Unidos são muito maiores e mais líquidos se comparados aos do Brasil, porque lá é o centro global das atividades financeiras e de investimento em ações das empresas multinacionais. Existe uma cultura de investimento mais arraigada, com uma parcela significativa da população (65%) especulando em bolsa de valores na esperança de riqueza rápida.
No Brasil, a cultura de investimento em mercados de ações ainda é raquítica e mal chega a 1,5% da população. De 2011 a 2017, o número de investidores em ações à vista era em torno de 500 mil. Em 2018, esse número cresceu para 600 mil. Em 2019, chegou ao número 1,2 milhão. Em 2020, com baixa do juro de referência para renda fixa até 2% aa, o número de investidores novamente dobrou para 2,4 milhões. Com a alta nos rendimentos dos investimentos em renda fixa, o ritmo de especulação em ações diminuiu e, no 2º. trimestre de 2023, atingiu 3,7 milhões detentores de ações à vista.
Enquanto aqui o número de sociedades abertas é de aproximadamente 400, nos EUA esse número ultrapassa os 7.000. Em termos de valor de mercado, nos EUA, as companhias somadas resultam em um valor de US$ 38,5 trilhões, e no Brasil esse número é de apenas US$ 701 bilhões, ou seja, apenas a Apple tem um valor de cerca de US$ 2,2 trilhões, mais de 3 vezes superior ao de todas as empresas brasileiras na bolsa.
Os adeptos dessa literatura acham a financeirização se referir a um “padrão de acumulação onde a obtenção de lucros ocorre cada vez mais por meio de canais financeiros – e não por meio do comércio e da produção de commodities”. Ora, no Brasil, as atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados no ano 2000 participavam com apenas 6,8% do valor adicionado na economia e permaneceram em torno dessa participação nas últimas duas décadas. Só atingiram 7,5% no ano 2022.
Embora seus denunciantes afirmem a financeirização ser “uma tendência global”, sua manifestação e impacto variam significativamente de país para país, devido às diferenças nas estruturas econômicas, sistemas financeiros e políticas públicas. Essas diferenças têm implicações para a estabilidade financeira, o acesso a crédito, o desenvolvimento econômico e a distribuição de riqueza em cada país.
O sistema financeiro alemão é um caso à parte, caracterizado por várias características distintas. Um traço notável do sistema financeiro alemão são as Sparkassen (Caixas Econômicas) e as Volksbanken (Bancos Cooperativos), instituições de crédito cooperativo focadas no financiamento das pequenas e médias empresas e nas finanças locais.
Mas Alemanha abriga grandes bancos comerciais, como o Deutsche Bank e o Commerzbank. Operam em escala internacional. Possui também bancos de investimento, como o DZ Bank e o KfW Bank, focados no financiamento de projetos.
O sistema financeiro alemão é conhecido por sua forte regulamentação. O BaFin (Autoridade Federal de Supervisão Financeira) é o órgão regulador responsável por supervisionar os bancos e instituições financeiras na Alemanha.
Historicamente, os bancos alemães desempenham um papel ativo na capitalização de empresas industriais. A associação acionária entre o capital bancário e o capital industrial gerou o capital financeiro em um modelo particular no mundo.
Por isso, o sistema financeiro alemão tem uma inclinação para o financiamento de longo prazo por meio de empréstimos bancários em vez de ser por capitalização nos mercados de capitais. Em comparação com os Estados Unidos, a captação de recursos por meio da emissão de ações é menos comum, na Alemanha, diante dos empréstimos bancários.
Na realidade, a economia de mercado de capitais a la americana e a economia de endividamento a la brasileira representam dois modelos econômicos diferentes em relação ao financiamento das empresas. No modelo norte-americano, as empresas levantam capital por meio da emissão de ações. Os investidores compram ações da empresa, tornando-se acionistas e, assim, têm uma participação na propriedade, nos lucros ou nos prejuízos da empresa.
Os acionistas compartilham o risco financeiro da empresa. Se a empresa vai bem, eles se beneficiam com os dividendos e a valorização das ações. Se a empresa enfrenta dificuldades, eles têm de suportar eventuais perdas.
Esse sistema financeiro encoraja os gestores a buscar o crescimento do lucro em curto prazo, para a valorização no mercado de ações, ligada à distribuição de lucros ou dividendos. Também recompram ações para não diluir a participação acionária.
Em economia de endividamento, o financiamento ocorre através de dívida. As empresas obtêm capital por meio de empréstimos, como títulos e empréstimos bancários, em vez de emitir ações. Eles devem pagar juros e principal de volta aos credores.
O risco financeiro recai principalmente sobre a empresa tomadora do empréstimo. Os credores recebem juros, independentemente do desempenho da empresa, mas não participam dos lucros. A ênfase empresarial é na manutenção de uma posição financeira sólida para cumprir suas obrigações de dívida.
A economia de endividamento é associada não só a mercados de crédito privado. Os governos obtêm financiamento por meio de emissões dos títulos de dívida pública.
Na prática, muitas economias modernas utilizam uma combinação de financiamento de mercado de capitais e endividamento bancário e público, dependendo das circunstâncias e das necessidades das empresas e governos. A escolha entre esses modelos pode afetar o comportamento das empresas e o risco financeiro envolvido.
O mercado de ações nos Estados Unidos tem uma história particular a qual remonta ao fim do século XVIII, ou seja, a ideia de associação acionária surgiu desde sua Guerra de Independência. O mercado de ações nos Estados Unidos teve suas origens em Filadélfia, onde comerciantes começaram a se reunir, informalmente, para comprar e vender ações de suas empresas. Em 1790, um grupo de 24 corretores assinou o “Buttonwood Agreement”, dando início à Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE).
Com o fim da escravidão, a expansão do setor ferroviário e industrial, a conquista das terras com genocídio dos nativos propiciando maior distribuição da propriedade, a concentração de capital, na Era dos Barões Ladrões no século XIX, houve um aumento na demanda por financiamento. Apareceu a oportunidade para os pequenos burgueses terem participação acionária nas companhias abertas por grandes burgueses.
Enfim, existem pelo menos três tipos de sistemas financeiros em todo o mundo. Variam de acordo com as estruturas e regulamentações específicas de cada país ou região.
A maioria dos países têm sistemas financeiros dominados por instituições bancárias, onde os bancos desempenham um papel central na intermediação financeira. Esses bancos podem ser bancos comerciais ou bancos de investimento, supervisionados por Bancos Centrais.
Em contraste com os sistemas bancários, poucos países (os anglo-saxões) têm sistemas financeiros mais orientados para o mercado de capitais. Nesses sistemas, a emissão de ações e títulos é a principal forma de captação de recursos para empresas.
Na realidade, predominam sistemas financeiros mistos, capazes de combinar características de sistemas bancários e de mercado de capitais. Isso permite uma maior diversificação de fontes de financiamento, inclusive em cooperativas de crédito sob a propriedade coletiva e o controle representativo de todos os membros.
Há outros casos à parte, por exemplo, em países onde a lei islâmica é predominante. Proíbe a usura (cobrança de juros) e promove a partilha de lucros e perdas.
Em alguns países, existem sistemas financeiros voltados especificamente para o desenvolvimento econômico. Eles podem incluir bancos de desenvolvimento, agências de crédito, e outros órgãos financeiros criados para promover investimentos e crescimento econômico. Foi o caso brasileiro, durante a Era Desenvolvimentista (1951-1980), com o uso de bancos e empresas estatais para tirar o atraso histórico.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.