Conciliação de Classes em Projeto Nacional ou Luta de Classes?
O lançamento do livro Carlos Lessa, o Passado e o Futuro do Brasil (1ª. ed.- Brasília: ABED: Editora Fundação Perseu Abramo, 2023), uma coletânea de ensaios organizada por membros da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED) – download no fim deste artigo –, possibilita diversas leituras interessantes. De início, vou aqui tentar distinguir as sutis diferenças ideológicas entre a geração emedebista do querido Professor e a minha petista, ou seja, a seguinte à dele, formada por muitos ex-alunos.
Uma brincadeira/provocação, realizada entre nós, talvez dê uma pista inicial. Aliados, mas conhecendo nossas diferenças políticas, quando reencontrávamos em reuniões político-sindicais no Rio de Janeiro, provocávamos um ao outro – e ríamos!
No início dos anos 80, ele era então militante do PMDB e eu era um entusiasmado organizador do Núcleo de Economistas do Partido dos Trabalhadores no Rio de Janeiro. Ele provocava: – “Fernando Mineiro, o último radical!” Eu retrucava: – “Professor Lessa, o único campineiro chaguista!”
Chaguista era referência ao Governador Chagas Freitas, governador da Guanabara (1971 a 1975) e do Rio de Janeiro (1979 a 1983). Seu nome deu origem ao termo “chaguismo”, e designava uma forma particular de utilizar a máquina pública estatal de maneira populista e dominar a política carioca e fluminense de 1970 a 1982.
A gozação era porque ele e alguns colegas professores da Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo, davam assessoria ao presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, na luta pela transição da ditadura para uma democracia. Já meus colegas (ex-alunos dele) e eu éramos “basistas”: acreditávamos na superação da ditadura não “negociada por cima”, tipo um pacto de elites, mas sob a pressão da sociedade “organizada por baixo”.
Desde logo, não éramos sectários. O termo sectarismo, em sentido estrito, se aplica ao seguidor de uma seita – como o atual pentecostalismo –, mas pode também denotar zelo ou apego exagerado a um ponto de vista com uma visão estreita, intolerante ou intransigente. Muitas seitas, religiões e grupos ideológicos são obstinados e inflexíveis na defesa de suas doutrinas.
Nós éramos próximos e aliados, não só como alunos e professores com admiração mútua, mas como companheiros de luta no Movimento de Renovação dos Economistas. Uma frente ampla no Instituto de Economistas do Rio de Janeiro (IERJ), fundado em 1977, reunia todos os democratas, inclusive a maioria trabalhava no aparelho de Estado, como seu primeiro presidente, Pedro Malan, técnico do IPEA-INPES, futuro ministro da Fazenda (1995-2002).
Na realidade, o Estado brasileiro era o grande empregador de economistas no ex-Distrito Federal. Trabalhávamos no IBGE, BNDE, PETROBRAS, EMBRATEL, IPEA, UFRJ, UFF etc.
Conscientemente, reivindicávamos o nosso Estado estar sob uma direção democrática eleita – e não sob um comando militar autoritário no Poder Executivo com simulacros eleitorais (“indiretos”), para outros cargos com governadores e prefeitos, onde só podia vencer os candidatos da ARENA. Isso ocorreu até a primeira reação eleitoral, em 1974, quando o ME (Movimento Estudantil) se aliou em campanha para candidatos progressistas do outro partido autorizado, o MDB.
Essa eleição significou, na história brasileira, uma guinada em direção a abertura política. Para senador, a oposição elegeu 16 senadores contra apenas 6 da situação.
A expressiva vitória do MDB e a perda de espaço da ARENA no Senado assustou o Regime Ditatorial. Nos anos seguintes, lançou a Lei Falcão e o Pacote de Abril com o objetivo de podar a oposição, mantendo a ditadura militar por mais onze anos.
No entanto, a sociedade brasileira passou a se organizar em movimentos sociais em favor da democracia. Após as lutas sindicais do ABC paulista (com o surgimento da liderança de Lula) e da fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980, de 21 a 23 de agosto de 1981, foi realizado o até hoje é considerado o maior encontro sindical no Brasil.
A importância foi histórica, considerando-se o período de reorganização de forças ter acontecido ainda sob a ditadura. Mais de 5 mil delegados de mil entidades participaram em Praia Grande-SP, da 1ª CONCLAT (Conferência Nacional da Classe Trabalhadora).
Envolveu, pela primeira (e única) vez, em três dias de discussões, todas as correntes de pensamento atuantes no sindicalismo. Ali foi aprovada a decisão de se criar uma Central Única. Só aconteceria dois anos depois – com a formação da CUT –, porque as divergências com os “pelegos” impediram o discurso unitário.
A categoria profissional dos economistas, no Rio de Janeiro, era muito organizada na época em oposição ao regime, via IERJ-CORECON-Sindicato. Tinha o direito a escolher um pequeno número de delegados para participar. Carlos Lessa, naturalmente, foi o mais votado, mas eu fiquei em seguida com diferença muito pequena de votos…
O ensaio “Conversa no Estacionamento, ou a Aula de Carlos Lessa sobre a Questão Nacional”, escrito pela amiga, companheira do PT e colega Gloria Moraes, expõe bem as nossas (sutis) diferenças políticas. Eram marcas de duas gerações sequenciais, embora com os mesmos propósitos democráticos, mas a nossa tinha uma formação marxista.
Glorinha comenta com humor irônico as diferenças ideológicas. “Sem dúvida, admirávamos esses professores por sua coragem, audácia, total domínio do conhecimento e do discurso, mas os considerávamos reformistas e conservadores. Nós, os revolucionários, nos mantínhamos arraigados ao internacionalismo, às nossas ideias, expressas nos documentos das O. [organizações clandestinas] – e possíveis ‘ações’ futuras”. A geração 68, marxista, era contra a conciliação de classes da geração anterior.
O Professor Lessa lhe disse: “não cabia no PT. Nós, embora nos propuséssemos a ser um partido de massas, não fazíamos a menor ideia de o que fazer com um país do tamanho do Brasil com o Estado como o principal agente do desenvolvimento”. Ele discorreu sobre “os limites do desenvolvimento brasileiro: além de olhar para as questões externas, para as instituições e os instrumentos disponíveis, nós deveríamos também saber avaliar as composições de interesses no governo e no Congresso”.
Segundo o Professor, saber identificar as articulações existentes entre os grupos políticos e os “donos” do capital era essencial para a definição de prioridades e desenhar um projeto político nacional, no qual os trabalhadores fossem os protagonistas.
Sua verdadeira obsessão por um projeto nacional, expressa em diversos artigos na imprensa, cobrando isso dos governos do PT, revelava sua acentuada ideologia nacional-desenvolvimentista. Criticava inclusive “os anos Lula” pela bonança nas contas externas e sucesso no controle da inflação ter sido um resultado obtido sem mudança estrutural relevante. A promessa para o futuro repousava no pré-sal, porém, colocava em dúvida se a economia brasileira se converteria ou não em exportadora de óleo cru.
Para ele, a empresa privada, no Brasil, tinha um comportamento tímido em termos de ampliação de capacidade produtiva. Caso fizesse parte de um oligopólio, sua timidez engendrava uma anêmica taxa de investimento produtivo e uma orientação de rentista, acumulando recursos financeiros para realizar seu sonho de assumir o controle acionário de uma competidora ou fornecedora crítica.
Lessa explicava essa inoperância em novos empreendimentos: “não tem clara a percepção de um futuro maior, pois inexiste um projeto nacional. Sabe da intolerância governamental com altas de um dígito na taxa de inflação, dado utilizar o modelo de metas de inflação, implicando em valorização do real e juro primário muito elevado”.
O empresariado só confiava, no caso da indústria automobilística e de eletrodomésticos, no endividamento familiar não intimidável por juros. Os empresários eram praticantes da venda a prestação para famílias endividadas enormemente lucrativas.
Viam com desconfiança qualquer ideia de projeto nacional e reduziam a ação do governo à gestão limitada das políticas públicas. A política econômica, monetária e fiscal sacrificava o investimento público.
O Professor repetia diversas vezes para seus ex-alunos petistas: “não se ganha um governo para um mandato, se ganha um governo pensando no longo prazo, na sucessão, nos apoios e alianças feitas e nem sempre explicitadas. Vocês têm ideia da diversidade do empresariado nacional? Têm mapeado os setores produtivos e suas lideranças? Têm ideia do tipo de inserção internacional desejada?”. Pensávamos ter…
A “teoria da cooperação entre classes” ou “política de conciliação capital-trabalho” era vista como uma teoria reacionária burguesa. Pregava lograr “prosperidade comum” e “desenvolvimento social” por meio da coexistência pacífica, cooperação e conciliação entre a classe trabalhadora e a classe capitalista na sociedade capitalista. Em uma sociedade exploradora, rechaçava a luta e o antagonismo entre as classes. Esse reducionismo binário era uma “camisa-de-força” no livre-pensar. Lamentável…
Download do Texto para Discussão:
Fernando Nogueira da Costa- Intérprete do Brasil Artigos de Carlos Lessa (2010-2011)
Download do Livro da ABDE:
ABDE – Carlos Lessa O Passado e o Futuro do Brasil – FPA 2023
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.