A marcha da distopia
No país, as privatizações condensam o método antropofágico para a acumulação da riqueza por poucos. Uma extensa bibliografia sobre a década de 1990, em especial, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, aborda os negócios escusos que cobriram falcatruas: O Brasil privatizado: um balanço do Estado, de Aloysio Bioldi; A privataria tucana, de Amaury Ribeiro Jr.; O príncipe da privataria, de Palmério Dória. O pretexto do repasse das empresas superavitárias para a iniciativa privada foi a redução da dívida líquida do setor público, o que se mostrou uma falácia. Entre 1994 e 2002, a dívida pública saltou de 32% para 56% do PIB nacional. As fake news não são novidades.
Os governantes da cartilha do neoliberalismo tratam bens construídos por várias gerações como se as joias fossem suas, sem propor plebiscitos para auscultar a vontade popular. Para privatizar, antes menosprezam a democracia. A representação que recebem nas urnas é convertida na delegação para fazerem o que quiser no poder, via de regra, sem aviso prévio nas campanhas eleitorais. O resultado é o aumento das desigualdades, do desemprego, da pobreza, da fome e de serviços muito piores.
As privatizações coincidem com a aplicação da “austeridade” na economia, lê-se em Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina, da economista Laura Tavares Soares. A liquidação do patrimônio público anda junto com a precarização da existência das classes trabalhadoras. O povo empobrece na velocidade com que o país se desnacionaliza. A marcha da distopia é saudada com loas à “modernização” e à “globalização”, para liberar fronteiras para o consumo e o capital. A cinegrafia hollywoodiana capta o medo coletivo de um fenômeno que ocorre nos dois hemisférios, em maior ou menor intensidade. O neopentecostalismo oferece o ombro ao desamparo individual.
Para lembrar a aldeia do Rio Grande do Sul, e quiçá universalizar a experiência sobre o que os mandatários comprometidos com o bem comum NÃO devem fazer, a aliança do PSDB / Eduardo Leite e o MDB privatizou a CEEE e a CORSAN, luz e água essenciais. O slogan emedebista sobre a “alma gaúcha”, usado para salientar a gauchidade, é uma tentativa demagógica de naturalizar um posicionamento político-ideológico-classista, como se brotasse da estética de um baile no CTG.
A pantomima se repete. O chefe do Movimento Integralista Brasileiro, o arroubo fascista que se derramou pelos anos 1930, Plínio Salgado, batia na mesma tecla subjetiva para significar uma brasilidade – “o sertão é uma mentalidade, um estado de espírito”. O bolsonarismo, idem, acena com uma alma penada, a do patriota que não olha para cima, oculta o apoio à financeirização do Estado e à monocultura do agronegócio neocolonial tipo exportação. São técnicas para ludibriar.
Na divisão política do entreguismo, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo e o vice Ricardo Gomes, membro do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), repassam terrenos e parques com corte de árvores para erguer a roda gigante e o estacionamento. Ademais, privatizam a joia da Carris. O alcaide José Fogaça, lá atrás, preparou o cenário ao retirar da EPTC o controle da bilhetagem, a venda antecipada e a caixa de compensação da tarifa social, abdicando do papel do poder público.
São 121 prestações por 10 anos, pagas com recursos da própria empresa, outrora modelo de gestão. O município perde a referência fundamental à política de transportes, e garante prestações inferiores a 10% do que costumam contabilizar as linhas monopólicas atuais, denunciou o ex-prefeito Raul Pont, em “O escândalo da Cia. Carris, ou como criar capitalistas sem capital” (Sul 21, 16/10/2023).
Aprofunda-se a desrazão verde-amarela, ao Sul. Não é o interesse público que mede as transações comerciais em curso; é a ideia tola de que a gestão privada seria mais eficiente do que a gestão pública. O assunto da compra de livros, chromebooks e kits pedagógicos, sem uso, na rede escolar porto-alegrense não é um caso de incompetência, mas uma irregularidade. A sindicância interna concluída sem designar aqueles que devem explicações pela incúria. O lucro particular, não o bem-estar da população, move o privatismo de empresas estratégicas, sem as quais a sociedade fica à merce do mercado. A cidade é posta à venda pela (extrema) direita. A mídia corporativa passa pano. Explica-se: é neoliberal e, por igual, torce pela panaceia da cloroquina e ivermectina do mercado.
Não demora haverá uma bibliografia sobre cada evento vendilhão do templo, também na querência amada. O comportamento de cada instituição que esteve ligada ao processo das privatizações, logo será objeto de reportagens investigativas sérias, trabalhos de conclusão de curso nas universidades, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Nenhum personagem público que se envolve em negócios tão polêmicos e contestados escapa do julgamento público, mais cedo ou mais tarde.
A guerra é a continuação das privatizações por outros meios, parafraseando Clausewitz. Enquanto isso, o bombardeio no Oriente Médio não para. O hospital atingido por bombas na Faixa de Gaza – estima-se com 500 vítimas fatais – contribui na regionalização do conflito. O porta-voz do governo israelense posta na internet um mea-culpa que na sequência foi apagado, mas deixou as digitais do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Na Jordânia, uma multidão de manifestantes incendeia a sede da Embaixada de Israel em resposta à chacina. Cresce a indignação. O ato terrorista cometido pelo Hamas leva um Estado a reproduzir o irracionalismo. Os protestos espalham-se pela Europa.
A autoridade da ONU na condição de uma instância global de governança, muito desgastada por Donald Trump e seu fantoche da Barra (pesada) da Tijuca, precisa ser restaurada e fortalecida. É a oportunidade de restabelecer, em paralelo, o caráter massivo do Fórum Social Mundial (FSM) com correções de rumo para torná-lo mais organizativo das lutas da civilização contra a barbárie. A pandemia foi incapaz de humanizar os donos do teatro, que prosseguem na marcha da distopia. As notícias doem no estômago. Este artigo termina no verso-denúncia dos desvarios, com o suspiro de melancolia da poeta Cecília Meireles: “Saudade das esperanças / Quando se acabar o mundo”.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul