Retirada militar desarma extrema-direita no Brasil
A retirada das Forças Armadas para seus quartéis foi selada após os atos golpistas de 8 de janeiro, com diversos oficiais envolvidos na invasão do quartel-general dos Três Poderes em Brasília, e a consequente substituição do comandante do Exército em 21 de janeiro, com a ascensão do General Tomás Paiva, considerado legalista. (Foto: (Ricardo Stuckert/PR)
POR MARIO OSAVA
RIO DE JANEIRO – O patrocínio militar, singularidade da extrema direita no Brasil, deixou de ser um fator de desequilíbrio e tensão na política nacional, ante o reconhecimento tácito de seu fracasso nos últimos anos e a degradação de alguns de seus agentes.
A retirada das Forças Armadas para seus quartéis foi selada após os atos golpistas de 8 de janeiro, com diversos oficiais envolvidos na invasão do quartel-general dos Três Poderes em Brasília, e a consequente substituição do comandante do Exército em 21 de janeiro, com a ascensão do General Tomás Paiva, considerado legalista.
Sempre se tratou de diminuir a anomalia que foi a numerosa participação militar no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), incluindo quatro ou cinco generais em seu núcleo central palaciano, sob a alegação de que estavam aposentados. Mas os fatos provaram que eles representavam uma ampla opinião militar.
Além disso, dois oficiais da ativa mancharam a suposta eficiência e idoneidade militar. O general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde, de 15 de maio de 2020 a 23 de março de 2021, simbolizou a gestão mortal da pandemia de Covid-19 sob o governo de extrema-direita de Bolsonaro, capitão reformado do Exército.
A oposição a medidas preventivas, como isolamento social e uso de máscaras; a recomendação de medicamentos inapropriados, como a cloroquina para combater a malária; e falhas graves, como a falta de oxigênio em hospitais de Manaus, capital do Amazonas; respondem por grande parte das mais de 700 mil mortes por Covid-19 no Brasil, segundo especialistas.
A isso se soma o boicote às vacinas praticado pela obediência confessada do general às ordens do antigo governante, no final de 2020.
Outro oficial corrosivo para a reputação dos militares é o tenente-coronel Mauro Cid, detido desde 3 de maio, por falsificação de carteiras de vacinação anticovid-19 de sua família e de Bolsonaro e de sua filha Laura, de 12 anos. Ele fez isso quando era ajudante de campo do ex-presidente.
O ex-presidente sempre afirmou sua oposição à vacina, mas levantou suspeitas ao decretar sigilo de 100 anos sobre seu certificado de vacinação, em janeiro de 2021.
Fraude vacinal
A Controladoria-Geral da União do novo governo, presidido por Luiz Inácio Lula desde 1º de janeiro, anulou o sigilo em 13 de março, já que o próprio Bolsonaro tornou público seu estado de não vacinado, invalidando o sigilo.
Ocorre que posteriormente a Polícia Federal descobriu nos autos do Ministério da Saúde uma certidão visivelmente fraudulenta de duas vacinações do ex-presidente e de sua filha, visto que foram registradas como realizadas em cidades ou datas incompatíveis com suas agendas.
Investigações posteriores apontaram o tenente-coronel Cid como o responsável por tais crimes, com a cumplicidade de diversas autoridades locais. A esposa dele confessou à Polícia Federal no dia 19 de maio que havia usado a certidão falsa recebida do marido.
Bolsonaro garantiu aos mesmos policiais que não havia pedido a certidão e que tudo foi feito sem o seu conhecimento, colocando toda a responsabilidade sobre seu subordinado.
O ex-comandante de Operações da Polícia Militar do Distrito Federal, coronel Jorge Naime, denunciou que o Exército impediu por duas vezes a prisão dos “terroristas” acampados em frente ao Quartel General do Exército em Brasília, de onde partiram para invadir o quartel-general dos Três Poderes em 8 de janeiro. O coronel está preso por suposta omissão diante dos ataques e prestou depoimento à Comissão de Inquérito da Câmara Legislativa do Distrito Federal. (Imagem: Rinaldo Morelli/CLDF)
Um militar emaranhado
A situação do tenente-coronel, brilhante oficial apontado pela mídia militar como futuro general, já era vulnerável por ter tentado resgatar joias avaliadas em mais de um milhão de dólares, supostamente dadas de presente pelo governo saudita a Bolsonaro e realizada no aeroporto internacional de São Paulo.
A retenção deveu-se à forma clandestina de internação das joias no Brasil. Além disso, Bolsonaro tentou incorporar essas e outras joias, também trazidas da Arábia Saudita, ao seu patrimônio pessoal, desrespeitando as leis que destinam esse tipo de doação oficial ao patrimônio do Estado.
O tenente-coronel se envolveu ainda mais nos crimes do chamado “bolsonarismo” quando seu celular foi apreendido pela Polícia Federal, onde foram descobertos diálogos dele com outros militares, nos quais se discutiam planos de golpe de Estado.
Os interlocutores não eram oficiais da ativa, mas sim um coronel reformado e outro um ex-capitão expulso do Exército. Os diálogos fortaleceram as suspeitas de que havia pelo menos certa propensão para o golpe em setores das Forças Armadas, embora não um preparado plano.
Os comandantes de muitos quartéis toleraram os acampamentos de “bolsonaristas” instigando um golpe militar, em frente a seus quartéis por 70 dias, desde a derrota eleitoral de Bolsonaro em 30 de outubro.
Os inúmeros gestos de apoio a Bolsonaro nas eleições e no governo dificultam aos militares se dissociarem dos desastres causados pela extrema direita, especialmente na gestão da pandemia e dos ataques à democracia.
Mas é um atavismo das Forças Armadas brasileiras se esquivar de seus delitos. Eles nunca reconheceram as torturas sistemáticas, assassinatos e prisões ilegais cometidos durante a ditadura, mesmo a ditadura como tal.
O golpe militar de 1964, que inaugurou o regime autoritário que durou até 1985, teria sido uma contrarrevolução, um movimento em defesa da democracia contra o comunismo.
Eduardo Pazuello (com o microfone) ao lado do então presidente Jair Bolsonaro, durante atividade no Rio de Janeiro, em maio de 2021. O ex-ministro da Saúde ainda era general da ativa no Exército, por isso foi submetido a inquérito por infração disciplinar, ao participar de atos políticos. Mas o Exército o dispensou, em decisão que revelou sua submissão a Bolsonaro. Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil
Farsas mancham reputações
Um exemplo emblemático é o ataque no Rio de Janeiro em 30 de abril de 1981, no qual um sargento morreu e um capitão ficou gravemente ferido. A bomba com a qual eles iriam aterrorizar cerca de 20 mil pessoas presentes em um show musical explodiu antes dentro do carro que eles usavam.
A “investigação” do Exército apontou ambos como vítimas de um ataque de esquerda, apesar de todas as evidências em contrário e nenhum esforço para identificar os “terroristas”. Apenas 20 anos depois, o Supremo Tribunal Militar reconheceu a farsa, mas o sargento e o capitão como autores individuais.
Mas outros ataques anteriores, incluindo uma carta-bomba que matou a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil , Lyda Monteiro, deixaram claro que setores radicais das Forças Armadas buscavam prolongar a ditadura, com a insegurança causada por suas bombas. Seus comandantes decidiram devolver o poder aos civis.
O terrorismo teve o efeito oposto. Intensificou o movimento pela redemocratização do país, por meio de eleições livres e pelo voto direto da população, que culminou com o fim da ditadura em 1985 e a nova Constituição nacional em 1988.
De todo modo, aparentemente, resultou do esforço dos militares em manter sua reputação, mesmo negando fatos negativos. Três décadas depois de mergulhar na abstenção política, os militares voltaram ao poder por meio de eleições, impulsionando a candidatura de extrema-direita de Bolsonaro em 2018.
Com a derrota da reeleição em outubro de 2022, mais as falhas e delitos cometidos entre os seus, os militares voltam ao silêncio político. A extrema direita, que vem patrocinando os últimos anos, terá que prescindir de seu apoio ostensivo no futuro próximo e limitar-se à disputa eleitoral sem ameaças de golpe militar.
A imagem das Forças Armadas pode se deteriorar ainda mais devido às revelações da Comissão Parlamentar de Inquérito que buscará desvendar o emaranhado do dia 8 de janeiro, quando milhares de extremistas invadiram e destruíram os gabinetes da Presidência, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal em janeiro o 8º.
Muitos militares estão envolvidos nessa tentativa de golpe e as investigações poderiam se estender às dezenas de generais que toleraram os acampamentos bolsonaristas em frente aos seus quartéis, numa campanha pelo golpe fracassado. (ED: GE)
Artigo publicado na Inter Press Service (IPS). Tradução: Tatiana Carlotti
É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.