Nostalgia da senzala
Relatos amplamente divulgados na imprensa informam que cerca de 200 pessoas foram resgatadas em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, onde trabalhavam em três vinícolas na colheita de uvas. São elas Aurora, Salta e Garibaldi.
Relatos amplamente divulgados na imprensa informam que cerca de 200 pessoas foram resgatadas em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, onde trabalhavam em três vinícolas na colheita de uvas. São elas Aurora, Salta e Garibaldi. Ameaças, agressões, falta de equipamentos para o trabalho, jornadas extenuantes, comida estragada, alojamentos apertados e precários, havia apenas 4 banheiros para 200 pessoas. Os depoimentos dos trabalhadores resgatados demonstram o alto grau de exploração a que foram submetidos na colheita de uvas por intermédio de uma empresa de mão de obra.
Todos assinaram um contrato de prestação de serviços no valor de R$ 3 mil por 45 dias de trabalho, o período da safra de uvas. A jornada diária seria de 15 horas. Mas não receberam mais que R$ 400 para gastar em um mercadinho que pertencia ao dono da empresa com preços absurdos. Um pacote de biscoito água e sal, por exemplo, custava R$ 15.
Alguns trabalhadores denunciaram os maus tratos e foram agredidos por cinco “capangas” com mordidas, choques, socos, cadeiradas nas costas e “gravatas”. Os trabalhadores viviam amontados em beliches, separados em quartos pequenos sem manutenção ou limpeza. Vejamos alguns depoimentos:
‘Fui espancado com cabo de vassoura’
‘Os capangas diziam que baiano bom é baiano morto’
‘Cobravam juros de 50%’
‘Ouvi de um capanga que já tinham matado outros que reclamaram’
‘Todos andavam armados o tempo todo’
Segundo o Ministério Público do Trabalho, mais de 200 homens com idades entre 18 e 57 anos foram resgatados após terem sido enganados pela promessa de emprego temporário, alojamento e refeições pagas. Em pleno século XXI, ainda encontramos exemplos de trabalho escravo no Brasil. Muitos empresários tratam seus trabalhadores como seus antepassados tratavam os escravos. A escravidão foi extinta legalmente em 1888, mas permaneceu viva na cultura da classe dominante brasileira.
Os descendentes dos escravos, em sua maioria, encontram-se em situação de desigualdade social, sem acesso aos recursos culturais, econômicos e sociais garantidos aos descendentes da Casa Grande. A mestiçagem em larga escala ocorrida no país ampliou a exploração econômica e a opressão social para o grande número de mestiços, chamados pelo IBGE de pardos que, ainda segundo o IBGE, constituem a maior parte da população brasileira.
Na prática, a indenização cobrada pelos senhores de escravos após a abolição da escravatura foi entregar o Estado nas mãos dos latifundiários escravocratas. É conhecida a frase dita por André Rebouças a Joaquim Nabuco: “A República foi proclamada contra o 13 de Maio”. Por um lado, a República Velha, baseada na monocultura da economia agroexportadora, foi dominada pelos latifundiários. Somente 50 anos depois da Proclamação da República, quando estoura em 1939 a Segunda Guerra Mundial, a ditadura de Getúlio Vargas negocia apoio aos EUA em troca de financiamento à instalação da primeira indústria brasileira de aço em Volta Redonda. Foi o ponto de partida da industrialização brasileira, baseada na substituição de importações e bloqueada décadas depois com o predomínio do neoliberalismo na política econômica.
Outro fator importante é constatar que, no Brasil, a modernização econômica se fez à custa do atraso social, da superexploração da força de trabalho e da negação da cidadania para as camadas populares. Ainda hoje, 135 anos após a abolição da escravatura, a discriminação racial e o preconceito social andam de mãos dadas e reproduzem-se sem cessar nas entranhas profundas da sociedade. Por exemplo, em muitos prédios de classe média e alta, os empregados são proibidos de usar o elevador social. O empregado é tratado como carga, como objeto, e não como cidadão sujeito de direitos. Aprovei na Assembleia Legislativa do RJ a Lei 962, de 28/11/1985 que proíbe restringir acesso ao uso de entradas, elevadores, escadas de prédios e edifícios, em virtude de raça, cor ou condição social. A Lei existe, e muitos conflitos surgiram e ainda surgem nos condomínios quando alguns moradores querem aplicar a lei.
Os trabalhadores das vinícolas gaúchas foram confinados em formas disfarçadas de senzala para que seus patrões continuassem gozando os privilégios da Casa Grande. Os empregadores culparam a legislação social e o programa bolsa família que dificulta encontrar mão de obra barata, ou seja, semi escrava. Sintomático dessa atitude foi o discurso altamente preconceituoso do vereador de Caxias de Sul, Sandro Fantinel, aconselhando os agricultores, produtores e empresários do setor agrícola a não contratarem pessoas da Bahia, a quem definiu como “um povo que vive na praia tocando o tambor” e “acostumado com carnaval e festa”. As Defensorias dos Estados da Bahia e do Rio Grande do Sul elaboraram e protocolaram, na quarta-feira 1/3, uma representação na Comissão de Ética da Câmara de Vereadores de Caxias do Sul (RS) pedindo a cassação do mandato do vereador. Infelizmente, o pronunciamento do vereador não é um fato isolado.
Após a abolição da escravatura, os proprietários de escravos pediram indenização porque consideravam a escravidão como seu “direito”. Laurentino Gomes, autor da famosa trilogia sobre Escravidão, afirmou que “o Brasil foi o maior território escravista do Ocidente, o último a extinguir o tráfico negreiro, e o último a abolir a escravidão. O resultado é um legado de desigualdade social, exclusão e violência”. E nos relembra José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, que definiu a escravidão como um “cancro que contaminava e roía as entranhas da sociedade brasileira”.
Pelo que se vê, a contaminação dura até hoje. Um exemplo assustador ocorreu na última eleição: 49% dos eleitores votaram no candidato fascista, racista, homofóbico, misógino, corrupto, tosco, ignorante, incompetente, cuja maior proposta era um golpe de Estado para implantar uma ditadura militar no Brasil. Mas a contaminação não se expressa só na hora do voto, ela roeu “as entranhas da sociedade brasileira”. Ricos desprezando pobres, brancos discriminando negros, patrões explorando empregados, poderosos oprimindo humildes, são ocorrências frequentes a indicar que a oligarquia dominante no Brasil não cansa de demonstrar sua nostalgia da senzala.
Liszt Vieira é integrante da Coordenação Política e Conselho Editorial do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da Associação Alternativa Terrazul. Foi Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92, secretário de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (2002) e presidente do Jardim Botânico fluminense (2003 a 2013). É sociólogo e professor aposentado pela PUC-RIO.