Dogmas econômicos da extrema-direita
É necessário “ter estômago” ou abnegação – uma forma de sacrifício ao ignorar os próprios interesses – ao infiltrar-se em hostes de “patriotários”, clamando por golpe e ditadura aos militares. O investigador agiria em nome da Ciência Política e/ou da Psicologia da Turba (“Loucura Coletiva”) ao fazer esse levantamento de campo sobre o perfil social,…
É necessário “ter estômago” ou abnegação – uma forma de sacrifício ao ignorar os próprios interesses – ao infiltrar-se em hostes de “patriotários”, clamando por golpe e ditadura aos militares. O investigador agiria em nome da Ciência Política e/ou da Psicologia da Turba (“Loucura Coletiva”) ao fazer esse levantamento de campo sobre o perfil social, etário e educacional dessa gente golpista.
Não tendo idade nem aptidão para tal tarefa, meu autoflagelo na Terra, para alcançar um lugar no Paraíso, se deu com breve visita ao site do Instituto Mises Brasil. Fiz um levantamento dos títulos de artigos postados de meados até o fim deste ano eleitoral.
Com essa pequena amostra já se percebe serem representativos da ideologia de extrema-direita, onde o pressuposto ultraliberalismo de von Mises, crítico do intervencionismo econômico, se transforma em apoio ao pedido de “intervenção militar ou federal” em Terrae Brasilis. Vale-tudo para o anacrônico discurso anticomunista: os “austríacos tupiniquins”, em sua luta cega contra o Estado – escrevem “estado” em minúscula para demonstrar o pouco apreço –, acabam se opondo ao Estado de Direito no Brasil!
Confira os títulos, são típicas bandeiras-de-luta contra o fantasma do comunismo – e do keynesianismo: “Quando Mises destruiu o socialismo: 100 anos do mais importante artigo econômico já escrito”; “O tenebroso conto de fadas da Teoria Monetária Moderna – e de André Lara Resende”; “A Teoria Monetária Moderna foi aplicada na Argentina. Eis os resultados”; “Karl Marx e a diferença entre comunismo e socialismo”; “Governo inchado e democracia: um arranjo economicamente explosivo e insustentável”; “Você sabe quem é o presidente da Suíça?”; “Se o objetivo é limitar os gastos do governo, há um exemplo prático a ser copiado: a Suíça”; “Ninguém se preocupa com política e a pujança econômica está por todos os cantos: eis a Suíça”; “Déficits financiados via impostos ou via endividamento: as consequências não-premeditadas”; “Por que políticas de estímulos e intervenções governamentais geram recessões”; “Ciclo nefasto: a economia cresce, o governo gasta, e os gastos do governo depredam a economia”; “Como o desarmamento se transformou em um instrumento de tirania na Venezuela”; “Dois desafios para os social-democratas defensores do intervencionismo estatal e de um estado grande”; “Aviso aos socialistas: é impossível argumentar contra o histórico 100% fracassado do socialismo”; “Sobre como resistir ao mal — há os que se vendem, e há os que se retiram da luta”; “Cresci em uma economia socialista. Eis o que as pessoas não entendem sobre liberdade”; “É incompreensível um pobre ser de direita!, diz a esquerda — eis as duas contradições desta frase”; “Questão de lógica: aumento salarial imposto por governo e sindicatos não pode estimular a economia”; “A grande ameaça para a liberdade e a civilização vem da esquerda”; “Só o capitalismo pode fazer a ganância e o egoísmo melhorarem a vida das pessoas”; “Por que a ‘melhor década’ em termos de criação de riqueza foi também a que gerou maior desigualdade”; “Mesmo em uma sociedade com igual ponto de partida, haveria capitalistas, assalariados e desigualdade”; “Não é exclusividade da Rússia. Todo estado é formado por oligarcas”; “Por que defender o socialismo é defender a escravidão (e pior)”; “O Brasil está ‘dividido’? Ao contrário: está mais plural do que nunca. Para desespero da esquerda”.
Qualquer liberal igualitário – e nem vou citar o caso de militantes de esquerda – já sente nojo, asco e ânsia de vômito ao ler esses excrementos da direita. Mas, por dever do ofício de ser um professor de Economia pluralista e com a obrigação de fazer uma crítica acadêmica construtiva, ou seja, apresentando uma alternativa aos alunos e leitores, vou destacar aqui os principais fundamentos teóricos da Escola Austríaca de Pensamento Econômico, segundo o Mises Institute – deixo a tarefa da crítica política aos cientistas políticos.
Primeiro dogma (propriedade privada): “A civilização em si é inconcebível sem propriedade privada. Qualquer transgressão à propriedade resulta em perda de liberdade e de prosperidade.”
Crítica marxista / keynesiana: “Somente por meio da regulamentação, da transferência de renda, da redistribuição de riqueza e da propriedade comunal pode uma sociedade alcançar a igualdade, a justiça e a dignidade humana para todos. O Estado deve intervir para impedir abusos de poder econômico com base em regalias dos proprietários”.
Segundo dogma (dinheiro): “O dinheiro sempre surge do escambo. A evolução do dinheiro e das instituições monetárias ocorrerá mais harmoniosamente caso seja deixada a cargo das forças concorrenciais de mercado criadoras delas. Intervenções estatais irão resultar em inflação e produzir várias outras distorções.”
Crítica cartalista (Knapp) / keynesiana: “O dinheiro é uma criatura do Estado nacional. Operações cambiais exigem a regulação de um Banco Central para estabilizar mercados e evitar maiores danos (desemprego, perda de renda real etc.) com flutuações cíclicas”.
Terceiro dogma (valor econômico): “Somente a mente humana pode atribuir valor econômico a algum bem por satisfazer seus desejos subjetivos. O valor é gerado por esses desejos individuais.”
Crítica marxista: “O valor de mercado de uma mercadoria supera à quantidade total (medido em tempo) de trabalho empregado em sua produção, gerando mais-valia”.
Quarto dogma (metodologia da Ciência Econômica): “O método correto de se conduzir pesquisas na Ciência Econômica é através do individualismo metodológico, ou seja, por levantamento das atitudes subjetivas ou mentais dos indivíduos em relação aos temas econômicos da produção, distribuição e circulação. Os indivíduos deduzem conclusões lógicas de axiomas auto evidentes.”
Crítica metodológica: “Para fazer pesquisas socioeconômicas e políticas é necessário estudar as ações coletivas dos grupos interativos com os quais as pessoas se identificam, divididos por classe, cor, gênero etc. Tal holismo metodológico analisa a emergente sociedade através dos inter-relacionamentos, distintos do subjetivismo interpretativo.”
Quinto dogma (taxa de juro): “Juros são uma consequência de um fato apriorístico: tudo o mais constante, o indivíduo prefere usufruir um bem no presente a usufruir este mesmo bem no futuro. Um bem presente possui um valor acima deste mesmo bem no futuro. Para adiar o consumo, a poupança deve ser remunerada com juros. O governo não tem de interferir nas taxas de juros de mercado, bônus subjetivos autoatribuídos e/ou exigidos.”
Crítica marxista e keynesiana: “Juros são remuneração pelo uso do seu capital por terceiros com finalidade de lucro, ou seja, cobertura desse custo de oportunidade. Os juros compensam os investidores por sua perda de liquidez em certo período. A fixação da taxa de juros básica de referência mais alta é para controle da demanda agregada contra a inflação, mas baixá-la é relativamente impotente para estimular os investimentos em condições de Grande Depressão deflacionária. Com excesso de capacidade produtiva ociosa, empregadores não irão a ampliar. Nessa situação de expectativa pessimista, o gasto público substitui o privado por razão de política pública.”
Sexto dogma (poupança): “As pessoas se dividem em dois grupos de acordo com a forma como lidam com o próprio dinheiro. De um lado, um grande grupo de pessoas consumistas: consome toda a renda recebida e ainda se endivida para consumir mais além, mesmo quando isso limita o consumo no futuro, devido ao pagamento de prestações e juros. Do outro lado, algumas poucas pessoas capitalistas, limitando o consumo no presente, só consomem uma parte da renda para se capitalizar, devido aos investimentos feitos para receberem juros. Para não distorcer as escolhas e prevalecer a combinação capaz de refletir as genuínas preferências dos indivíduos, o governo não deve adotar nenhuma política com relação à poupança, mesmo para o caso de poupança compulsória na Providência Social para a velhice”.
Crítica marxista e keynesiana: “As pessoas já nascem em condições de desigualdade social sem ‘a sorte do berço rico’. Muitos trabalhadores recebem apenas o suficiente para a sobrevivência sem condições de poupar nenhuma sobra de renda. Impostos sobre herança, impostos sobre a renda, impostos sobre o lucro e os dividendos são essenciais para uma sociedade com desejo coletivo de maior a igualdade. Em um cenário de recessão, poupar pode fazer a economia entrar em retrocesso, caso o Banco Central não desestimule com a baixa da taxa de juro básica.”
Sétimo dogma (tamanho do governo): “Todas as escolhas voluntárias envolvem o julgamento subjetivo de situações futuras, cada indivíduo tem a capacidade de saber quais bens e serviços são os mais adequados para si, inclusive serviços como proteção e resolução de disputas. Idealmente, o governo estaria limitado apenas à proteção dos direitos básicos de cada cidadão. Instituições privadas são mais eficientes face às suas congêneres estatais.”
Crítica marxista e keynesiana: “Uma sociedade humanitária aboliria a propriedade privada, exceto para bens pessoais. O governo tem de ter a autoridade arbitrária para intervir em todos os mercados e corrigir suas falhas perceptíveis. O Estado e O Mercado devem seguir um modelo de parceria público-privada em favor de A Comunidade”.
Oitavo dogma (crescimento econômico): “A fonte do crescimento econômico são as trocas voluntárias e mutuamente benéficas entre os indivíduos. Os consumidores poupam uma parte de sua renda visando a satisfazer, no futuro, seus desejos não imediatos. Isto sinaliza para os empreendedores como deve ser a estrutura produtiva voltada para o longo prazo. Contratos privados, concorrência nos mercados e instituições privadas livres possibilitam esses investimentos e a acumulação de capital.”
Crítica marxista e keynesiana: “O capitalismo produz os bens e os vende, mas não de maneira democrática, satisfazendo a todos os cidadãos. O consumo privado não é o suficiente para gerar crescimento econômico. Em certas fases do ciclo, déficits orçamentários do governo são necessários para estimular a economia e ofertar bens públicos necessários para o crescimento econômico, em especial, na educação, na infraestrutura e na pesquisa científica.”
Nono dogma (ciclo econômico): “A redução artificial dos juros estimula os empreendedores a fazerem investimentos de longo prazo, tornados mais lucrativos de imediato, enquanto estimula os consumidores a se endividarem mais e a se tornarem mais voltados para o consumo imediato. Provoca uma descoordenação na economia.”
Crítica marxista e keynesiana: “Os capitalistas investem em máquinas, para diminuir a necessidade de mão-de-obra, com o intuito de elevar a produtividade, manter o desemprego alto e os salários baixos. A menor demanda agregada posterior leva a taxas de lucro declinantes e a recessões. O pessimismo entre os investidores e empresários leva a uma demanda efetiva insuficiente e a tempos econômicos difíceis.”
Décimo dogma (combate às recessões): “A recessão resulta de um conjunto de descoordenações e investimentos errôneos e insustentáveis, realizados em decorrência de uma política monetária expansionista. Trata-se de uma etapa essencial do ciclo econômico. Ela irá liquidar os investimentos ruins e liberar recursos até então imobilizados nestes investimentos, permitindo-os ser utilizados por outros setores da economia. Não apenas o governo não deve combater a recessão, como deve permitir ela seguir seu curso até o fim, purgando as empresas sem competitividade em toda a economia. Políticas contracíclicas logram apenas prolongar a recessão.”
Crítica marxista e keynesiana: “As recessões demonstram o laissez-faire ser uma política fracassada. O governo deve regular as corporações, inclusive colocar setores estratégicos sob controle estatal. Além de adotar medidas de expansão fiscal e monetária com baixa das taxas de juro, é essencial o governo proteger as indústrias mais atingidas pela recessão e seus trabalhadores desempregados.”
Von Mises, no livro “Liberalismo”, publicado em 1927, ou seja, cinco anos após os fascistas chegarem ao poder na Itália, elogia o fascismo: “Não se pode negar o fascismo e movimentos semelhantes visarem o estabelecimento de ditaduras, mas estão cheios das melhores intenções e a sua intervenção salvou por um momento a civilização europeia. O mérito conquistado pelo fascismo por si só viverá eternamente na história.” Em síntese do seu pensamento, liberdade para si, ditadura para os adversários…
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.