Camarada: do político ao social
Comentário a partir do livro de Jodi Dean
A nova-iorquina Jodi Dean, professora de teoria política e teoria feminista, em Camarada: um ensaio sobre o pertencimento político (Boitempo), estuda os afetos em torno da identidade política, da lealdade ao programa de superação do status quo e da irmandade cotidiana daquelas e daqueles que comungam os sonhos revolucionários. A palavra “camarada” condensa no tratamento o que projeta nas relações sociais, presentificando o futuro e pondo em prática uma utopia, aqui e agora.
Na apresentação, Christian Dunker destaca: “Sob esse significante de resistência, reúnem-se formas múltiplas de vida e identidades caracterizadas por uma condição comum, de luta pela igualdade e pela solidariedade. Comunistas, socialistas, anarquistas, cooperativistas são todos camaradas; mas, ainda que ele possa ser qualquer um, nem todo mundo pode ser um camarada. A diferença entre ser igual e desejar na mesma direção torna-se assim crucial. O camarada é um indutor da experiência do comum, experiência orientada pela fidelidade a uma verdade”. Tem convicção e oferece provas.
A etimologia latina de camarada remonta à camera, quarto ou abóboda, o espaço que estabelece a divisória entre quem está dentro e quem está fora. Em francês, camarade indica umquartel, algo compartilhado por soldados. Em alemão, genosse está vinculada ao verbo geniessen, que indica o desfrute coletivo de uma propriedade. Em russo, tovarish, advém de tovar, que reporta a irmãos no comércio. Em chinês, tongzhi substitui as designações de hierarquia e de gênero pelos vetores igualitaristas. Para Slavoj Zizek, “é o grau zero do comunismo, pressuposto da nova ordem social”.
Hasta la victoria
Jodi Dean compara o camarada a uma multidão. Ambos têm a mesma substância, uma “descarga igualitária”. O igualitarismo é a senha. A diferença é que na multidão as vibrações intensas são momentâneas; nos camaradas, permanentes. Tal corresponde a um ideal do eu com a expectativa de uma intervenção para modificar a realidade, ao lado dos que marcham e cantam A Internacional.
“Ao lutarmos juntos por um mundo livre de exploração, opressão e intolerância, precisamos poder confiar uns nos outros e contar uns com os outros. A palavra camarada nomeia essa relação”. O som que a identifica tem um caráter igualador e anti-hierárquico, por sobre as diferenças de sexo, raça ou classe persistentes no capitalismo. Mais, engendra atitudes: (a) disciplina; (b) alegria; (c) coragem e; (d) entusiasmo. Ser de esquerda, por suposto, é ter compromissos com a transformação radical. Para isso, é indispensável o companheirismo entre os que se dão as mãos na luta hasta la victoria.
O vocábulo da esquerda mundial equivalente a “companheira / companheiro” exprime o utopismo. A impressão, vivida, de que a unidade na ação em organizações anticapitalistas antecipa a sociedade socialista deve-se ao contraste com o que está aí. O perigo consiste em minimizar a necessidade da reeducação para ultrapassar a barreira da “liberdade dos modernos”, focada apenas na vida privada.
O sujeito político
“Quando as pessoas dizem ‘camarada’ elas mudam o mundo”. A assertiva evoca o conto de Máksim Górki, de mesmo título, também publicado pela Boitempo. No conto, ao ecoar o chamativo em uma cidade hostil aos mais pobres, os vulneráveis tomam consciência de sua força e rompem os grilhões da escravidão ideológica. A cena em que uma prostituta sente a mão em seu ombro e, ao escutar o enunciado, se coloca a chorar é muito marcante. Sinaliza o instante em que ela deixa de ser um objeto sexual de consumo, para se tornar o sujeito político das mudanças em um destino lúgubre.
Jodi Dean sublinha a passagem da melancolia à euforia, com a citação d’Os condenados da terra, de Frantz Fanon, que enfeixa a seminal obra anticolonialista com a ode aos que cumprem papel de parteiras de outro mundo: “Pela Europa, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, temos de mudar de procedimento, desenvolver um pensamento novo, colocar de pé um homem novo”.
Na continuação, cita Homenagem à Catalunha, de George Orwell, que comemora a Barcelona de 1936 na Guerra Civil Espanhola com a camaradaria utópica. “As formas servis e cerimoniosas de tratamento tinham desaparecido temporariamente. Ninguém mais dizia ‘señor’, ‘dom’, ‘usted’; todos se chamavam de ‘camarada’ e ‘tú’, e diziam ‘salud!’ em vez de ‘buenos días”’ – um brinde.
A Comuna de Paris
A camaradagem vai além da fraternidade entre irmãos. Segundo Frida Kahlo, inclusive, vai além do amor, aludindo o relacionamento com Diogo Rivera: “Diogo não é marido de ninguém e nunca será, mas é um grande camarada”. Nem o sangue ou o casamento servem de medida. Tampouco heranças por parentesco, que subtraem o laço material onde uns precisam dos outros. A união na batalha tem conotação política; o amor e a amizade exprimem a relação de interpessoalidade. Em conjunturas polarizadas, política, amor, amizade entram em conflito e se fragmentam em vez de se harmonizar.
Em 1866, em um texto dirigido à Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx corrobora os vínculos de afeição: “É um dos grandes propósitos da associação fazer que os trabalhadores de diferentes países não apenas se sintam, mas também ajam como camaradas no exército da emancipação”. Não basta compartilhar um programa político, para a real práxis transformadora.
Os communards da Comuna de Paris equivalem ao “camarada genérico”. Em uma efetiva revolução popular estavam na mesma trincheira, ombro a ombro. O termo é adotado pelos socialistas em fins do século XIX, na Alemanha. Na Inglaterra, propaga-se na acepção de Walt Whitman que – na base do homossocialismo – salienta a estreita interconexão entre a cumplicidade e a camaradagem. Em qualquer período ou geografia, para ser um camarada há que ter empatia com o sofrimento do outro.
Imaginação ao poder
Hoje, no turbilhão totalitário do neoliberalismo que eclipsou as mobilizações e sacramentou o hiperindividualismo, o espírito mercadista se universalizou a par do ressentimento avesso a uma política do bem comum, reduzida a uma realpolitik de negociações na institucionalidade. Trata-se de lutar por uma sociedade que não considere o ser humano como uma mísera fração econômica, descartável feito um peão no xadrez, como faz o sistema capitalista e seus think tanks para reduzir as cabeças com a desregulamentação dos órgãos estatais de controle sobre a majestade do mercado.
A “fenomenologia dos afetos” releva o dogmatismo dos antigos PCs e a elisão de sovietes na ex-URSS. Se a subjetividade do camarada genérico é minada pela burocracia do aparelho partidário, então o processo de burocratização conseguiu destruir os liames da crítica. No lugar, foi posto um vazio de pensamento sem a aspiração de uma nova ordem social. Tamanho tropeço encaixa-se na traição à dialética nos anos 1930 e no assassinato de Trotski. Toda fé determinista na história rompe com um marxismo aberto e com os valores emancipatórios, pois suspende a autonomia individual.
O futuro depende da combinação do socialismo com a democracia. Esse é o significado do slogan sessentista l’imagination au pouvoir (a imaginação ao poder). É o que distingue o vero militante. A saber, o “profeta” na acepção do Primeiro Testamento bíblico de quem aponta caminhos alternativos para abrir o horizonte da manhã. A história das ideias políticas explica o exercício do poder através de diversas figuras: o príncipe, o senhor, o cidadão, o burguês, o general, o presidente. Jodi Dean, ao enaltecer as mentes e os corações dos que se batem pelos ideais associativos, civilizatórios, pós-capitalistas, homenageia o protagonismo de um sujeito injustamente esquecido; sim, o camarada.
Do político ao social
O Rio Grande do Sul iniciou a via crucis por entre as mudanças climáticas que atingem a Ásia e a África. Os neoliberais deram enorme cota de contribuição à tragédia: por parte de um governador que segue a trilha predatória do desgoverno bolsonarista, na flexibilização das leis de proteção ambiental “para deixar a boiada passar”; e por parte do prefeito de Porto Alegre que torna o meio ambiente uma mercadoria monetizável, em parques. Anunciada nas Conferências Internacionais sobre o Clima, a hecatombe encontrou as comportas abertas no triste outono sul riograndense, pelo negacionismo científico tucano e a incúria que relegou os instrumentos municipais de prevenção.
Resultado: 458 municípios atingidos; 320 em emergência por perder parcialmente as condições de resposta institucional; 46 em calamidade, com prefeituras totalmente incapacitadas de responder ao infortúnio, incluindo a Capital e a Região Metropolitana; 500 mil moradores desalojados das casas; 80 mil em abrigos públicos ou improvisados – escolas e universidades, destaque para a Unisinos que acolheu 6 mil criaturas desamparadas. Somam-se aos 155 mortos, 90 desaparecidos. O luto escorre na angustiada indagação de um poeta: “E agora José? / Com a chave na mão / quer abrir a porta, / a porta não existe. / Se você cansasse / se você morresse. / Mas você não morre, / você é duro, José!”
Numa interpretação solta, o poema dialoga com as profecias de José Lutzenberger, fundador da visionária Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN, 1971) e, ainda, autor de Fim do futuro? Manifesto ecológico brasileiro (1976). Sobraram alertas à irracionalidade de um industrialismo destrutivo, envolto na dinâmica insaciável do lucro. A violência contra a natureza e a expansão desordenada dos núcleos urbanos, na beira de rios e lagos, eram prenúncios de desgraças.
O governo federal e o presidente Lula demonstram empatia no atendimento aos “novos farrapos”, com medidas concretas. Membros da Defesa Civil, de Alagoas, trazem drones avançados para mapear as zonas de risco na chuva, com a expertise adquirida no cataclismo causado pela empresa Braskem, na extração de sal-gema do subsolo de Maceió. O povo protagoniza ações solidárias com alimentos, medicamentos, roupas, toalhas, produtos de higiene, absorventes, escovas de dentes, colchões, e o carinho às vítimas sobreviventes. Os Correios assumem a distribuição gratuitamente.
A comoção sacode a realidade paralela, que reage com fake news para desorganizar os trabalhos, esfriar os ânimos e propagar a confusão cognitiva. Interessa desautorizar o Estado participativo e a solidariedade, obstáculos à gentrificação para expulsar o pobrerio de locais cobiçados e aprofundar as privatizações, a título da reconstrução pós-dilúvio. Fenômeno analisado por Naomi Klein, em A doutrina do choque – A ascensão do capitalismo de desastre. Com suas consultorias financeiras, os amigos da acumulação de oportunidade anteveem o gozo na babel, para radicalizar o livre mercado.
No ínterim, uma miríade de voluntários perscruta com barcos as ruas submersas para salvar corpos do abandono, nas ilhas do Guaíba e nos bairros de Canoas. O resgate para além das pessoas inclui mascotes (gatos, cachorros) e o cavalo Caramelo. Não há registros de cuidado com os animais na grande enchente de 1941. A incipiente consciência acerca das consequências sociais do “racismo ambiental”, que recai sobre as populações acometíveis, alastra-se pelas comunidades periféricas. Os que mais sofrem e desesperam são os de sempre, na trajetória supremacista do continente Brasil.
No caos instalado, atores humanitários anônimos ampliam e transpõem a noção de “camarada” da esfera do político para a esfera social. Não importa que a percepção seja infinita somente no tempo que durar a epifania de salvamento. A compreensão de que a resiliência plural é capaz de confrontar o modelo hegemônico na sociedade, pautado no ultraliberalismo da guerra de todos contra todos, é per se um fator de politização das massas. O movimento em fusão sociopolítica recende a esperança estampada no lema do Fórum Social Mundial (FSM), que o RS sediou nas edições inaugurais do evento altermundista – “Um outro mundo é possível”. Já tem até nome de batismo: Ecossocialismo.
Na imagem, capa do livro de Jodi Dean, “Camarada: um ensaio sobre o pertencimento político” (Boitempo) / Divulgação
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul