Salvar o povo Yanomami, nova urgência para o governo no Brasil
Deter o que muitos descrevem como genocídio do povo indígena Yanomami, no extremo norte do país, soma-se às urgências do novo governo brasileiro, já perturbado por um ataque golpista e uma crise militar em seu primeiro mês de vida.
RIO DE JANEIRO – Deter o que muitos descrevem como genocídio do povo indígena Yanomami, no extremo Norte do país, soma-se às urgências do novo governo brasileiro, já perturbado por um ataque golpista e uma crise militar em seu primeiro mês de vida.
Imagens de crianças desnutridas e doentes, com as costelas protuberantes, comoveram o mundo ao revelar a tragédia humanitária que vinham denunciando as lideranças indígenas e os procuradores do Ministério Público.
Foi necessária a visita do presidente Luiz foi necessária Inácio Lula da Silva, em dia 21 de janeiro, ao território Yanomami para desvelar a crise sanitária e alimentar da população local, e desencadear uma operação de emergência para salvar a vida de centenas de indígenas.
Nesse mesmo dia, Lula exonerou o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, na tentativa de superar a desconfiança em relação aos militares desde o dia 8 de janeiro, quando seguidores radicais do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e destruíram as sedes dos três poderes em Brasília, com a intenção de provocar um golpe de Estado.
O general se recusou a desativar o acampamento dos bolsonaristas que durante 70 dias esteve instalado em frente ao seu quartel-general, em Brasília, exigindo um golpe militar contra a chegada de um governo de Lula, o líder da esquerda moderada, que já governou o país entre 2003 e 2010.
Arruda também impediu por algumas horas que a polícia detivesse os golpistas que, após serem expulsos dos palácios da Presidência, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, refugiaram-se no acampamento.
Em seu lugar, Lula nomeou o general Tomás Paiva, considerado defensor da legalidade e favorável à política de separação das Forças Armadas.
Mas é duvidoso que se estabeleçam boas relações entre o atual governo e os militares, manifestamente hostis a Lula e partidários do ultradireitista Bolsonaro, que os reconduziu ao topo do poder durante seu governo (2019-2022), sendo ele próprio um capitão reformado do Exército.
Isso significou um resgate da autoestima militar, ferida desde o fim da ditadura militar de 1964 a 1985.
De emergência em emergência, no primeiro mês de mandato, Lula também foi convocado a salvar o Mercado Comum do Sul (Mercosul), durante a visita ao Uruguai, no dia 25 de janeiro, após o Brasil voltar a integrar a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), durante a reunião de seus 33 países-membros em Buenos Aires, na véspera.
Lula tentou, sem sucesso aparente, convencer o presidente uruguaio, Luis Alberto Lacalle, a desistir de um acordo de livre comércio com a China, que o Uruguai mantém fora do Mercosul. O acordo viola as regras do bloco, que é uma união aduaneira, por ter uma política tarifária comum.
A prioridade dada à economia, especialmente a austeridade fiscal, exigida pelo empresariado e economistas em geral, perdeu visibilidade frente aos urgentes desafios da reconstrução do Estado que o novo governo do Brasil enfrenta.
Crise humanitária
A tragédia indígena deixada pelo governo anterior se impôs na agenda de prioridades devido à já exposta agonia do milenar povo Yanomami, que somava 26.780 brasileiros segundo o censo de 2019, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Do lado venezuelano, eram 11.341, conforme o censo oficial de 2011.
Os Yanomami brasileiros vivem em um território demarcado em 1992, com 9,6 milhões de hectares, a maioria no estado de Roraima, o restante no estado do Amazonas.
“Um cenário de guerra”, resumiu Ricardo Weibe Tapeba, secretário da Sesai, ao se referir à realidade dos Yanomami. Pelo menos 570 crianças menores de cinco anos morreram nos últimos quatro anos do governo Bolsonaro, 29% a mais do que nos quatro anos anteriores, segundo a Sesai.
O titular da Secretaria pertence ao grupo de indígenas que, pela primeira vez na história do Brasil, assume a direção dos órgãos governamentais responsáveis pela política indigenista.
Joenia Wapichana, que foi a primeira deputada nacional indígena, hoje preside a Fundação Nacional do Índio (Funai), que nunca teve um indígena à frente, uma de suas antigas reivindicações.
Lula também criou o Ministério dos Povos Indígenas, cuja liderança passou para Sonia Guajajara, também deputada eleita. Os indígenas brasileiros costumam adotar o nome de suas etnias como sobrenome. O wapichana é um povo de Roraima, portanto próximo aos yanomami.
Mais de 1.000 indígenas Yanomami já receberam atendimento emergencial de saúde nos últimos dias, segundo Tapeba.
O Hospital Infantil de Boa Vista, capital de Roraima, recebeu cerca de uma centena de crianças com desnutrição grave, malária, diarreia e outras doenças, dada a impossibilidade de tratamento intensivo em território próprio, cujos limites ficam a mais de 400 quilômetros daquela cidade.
A tragédia se deve à deterioração da assistência médica e alimentar do governo nos últimos anos, dada a drástica redução orçamentária e de recursos humanos da Funai e da Sesai, cujas direções foram ocupadas por militares e pessoas sem conhecimento das funções.
Genocídio ao Tribunal Internacional
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que coordena as organizações indígenas das diferentes regiões deste vasto país sul-americano, anunciou que vai acusar Bolsonaro e seu governo de genocídio, perante o Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede na cidade holandesa de Haia.
A acusação suscitou dúvidas entre os juristas. Se se trata de “destruição parcial de uma etnia”, mas a configuração do genocídio exige a comprovação de que foi intencional, algo mais difícil.
Mas cortar orçamentos, nomear autoridades sabidamente incapazes para suas funções e reduzir assistências compõem uma política anti-indígena, com resultados óbvios e pretendidos, argumentam os defensores da acusação.
Também Bolsonaro estimulou agressivamente a expansão do “garimpo” (mineração informal, antes artesanal, agora mecanizada) e outras atividades econômicas ilegais em terras indígenas. Seus discursos sempre defenderam o extermínio, quando era deputado, e a conversão dos indígenas “para gente como nós”, como presidente.
As lideranças Yanomami estimam que existam cerca de 20.000 “garimpeiros” em seu território, uma invasão que contamina as águas com mercúrio, dissemina doenças como a malária, desmata grandes áreas e afugenta animais, tirando alimentos básicos dos indígenas, como peixes.
Mineração fundou Roraima e ataca os indígenas
Esse drama dos yanomanis e outras etnias locais já leva décadas, porém se agravou nos últimos anos de negação dos direitos indígenas e de políticas ambientais por parte de Bolsonaro.
Roraima nasceu como estado brasileiro graças ao “garimpo”, apontou Haroldo Amoras, professor de economia da Universidade Federal de Roraima e ex-secretário de planejamento do governo estadual por 14 anos, em entrevista à IPS, em Boa Vista, em novembro.
Dos seus 79 anos, Amoras viveu os últimos 43 anos em Roraima. Antes, ele esteve em outros três estados amazônicos.
O ouro é a dádiva e a maldição desse estado amazônico de 650.000 habitantes. Segundo o censo oficial de 2010, 11% de sua população era indígena. As terras indígenas demarcadas ocupam 46,2% do território.
O monumento ao garimpeiro na praça central da Boa Vista reconhece esse papel histórico. A cidade possui diversas avenidas com comércio dedicado à atividade e o aumento da venda de querosene de aviação e da importação de equipamentos aeronáuticos reflete o aumento do garimpo ilegal nos últimos anos.
A atividade responde por grande parte da economia local e isso, apesar de sua ilegalidade, se reflete no poder político, dificultando sua expulsão da área Yanomami.
Mario Osava é correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.
Artigo publicado originalmente na Inter Press Service (IPS)
É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.