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Equador ataca o coração do direito de asilo na América Latina

Equador ataca o coração do direito de asilo na América Latina

Perante jornalistas da imprensa escrita e televisiva e transeuntes, membros da polícia equatoriana, fortemente armados, invadiram a embaixada do México em Quito no último dia 5. O antigo vice-presidente Jorge Glas foi capturado, em violação dos tratados internacionais sobre a inviolabilidade das sedes diplomáticas. (Imagem: Conaie/X).

POR HUMBERTO MÁRQUEZ

CARACAS – O assalto do Equador à embaixada mexicana em Quito, no dia 5 de abril, foi um golpe no coração do direito de asilo, que as nações latino-americanas valorizam como patrimônio comum, independentemente das facções políticas, há mais de um século.

Unidades da polícia equatoriana fortemente armadas invadiram a sede diplomática na noite de sexta-feira 5 para prender Jorge Glas, ex-vice-presidente do então presidente esquerdista Rafael Correa entre 2013 e 2018, que estava na embaixada como requerente de asilo político.

Violenta e flagrantemente violaram a sede diplomática, dominaram o pessoal mexicano e maltrataram o chefe do escritório diplomático, Roberto Canseco, à vista de jornalistas, televisão e transeuntes presentes na área da capital.

A reação do México consistiu em romper imediatamente as relações diplomáticas com o Equador e desencadeou-se uma vaga de condenações e críticas, principalmente por parte dos governos americanos e europeus.

Estão sendo convocadas reuniões urgentes da Comunidade de Estados Latino-Americanos e das Caraíbas (CELAC) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) para analisar o novo conflito na região.

Ao invadir a embaixada, o governo do jovem presidente equatoriano de direita, Daniel Noboa, violou a Convenção de Viena de 1961, assinada e aceite por 190 nações do mundo, incluindo todas as Américas, que garante a inviolabilidade das instalações diplomáticas e a imunidade do seu pessoal.

Contrariou e violou também a instituição do asilo que se construiu na América Latina, de forma pioneira, desde meados do século XIX, e que foi desenvolvida em acordos dos quais o Equador foi signatário, bem como em decisões de tribunais internacionais e regionais.

É por isso que a agressão é um ataque a uma norma e instituição latino-americana que não só protegem as pessoas em perigo por razões políticas, como também atuam como um escudo para os Estados menores e relativamente fracos – como o próprio Equador, em algumas ocasiões – contra os maiores e mais poderosos.

A invasão ocorre quando o continente é dilacerado por tendências autoritárias, não mais pelo punho das ditaduras militares, mas por governantes e líderes populistas que desrespeitam as normas cultivadas na região sobre formas democráticas de política e a priorização do Estado de direito e dos direitos humanos.

E acontece quando, noutros países da região, pessoas perseguidas pelos governos a que se opõem procuram refúgio em países vizinhos ou em embaixadas, como é o caso de cinco opositores venezuelanos atualmente abrigados e à espera de salvo-conduto na embaixada da Argentina em Caracas.

O Equador justificou a invasão da embaixada com o argumento de que “havia um risco real de fuga iminente do cidadão solicitado pela justiça (Glas)”, segundo a ministra dos Negócios Estrangeiros, Gabriela Sommerfeld, e de que as forças de segurança atuaram para cumprir uma ordem judicial de detenção.

“Nenhum criminoso pode ser considerado perseguido político”, disse Sommerfeld, lembrando que Glas foi condenado por crimes num esquema de suborno da construtora brasileira Odebrecht, e solicitado por outros e, nesse sentido, o seu país “esgotou o diálogo diplomático com o México”.

Mas a qualificação de quem merece ou não merece asilo, diplomático neste caso, corresponde ao Estado de acolhimento do requerente e não ao país que o acusa ou o persegue, conforme as normas internacionais e regionais que regem a matéria.

O México, após as críticas e, ao mesmo tempo, os apelos à calma do presidente Andrés Manuel López Obrador, levará imediatamente o caso ao Tribunal Internacional de Justiça em Haia, anunciou a sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Alicia Bárcena.

Manifestantes se reuniram em frente à embaixada do Equador no México para protestar contra o ataque à embaixada do seu país em Quito. O Presidente Andrés Manuel López Obrador ordenou a ruptura de relações e levou o caso ao Tribunal Internacional de Justiça. Imagem: Daniela Pastrana / Pie de Página.


Patrimônio violado


O asilo, com raízes religiosas na Idade Média europeia e na Paz de Vestfália, que em 1648 cimentou o sistema de relações internacionais, avançou na América Latina após a independência de seus países no século XIX, e o respeito pelas legações diplomáticas foi parte integrante da formação de seus Estados.

Já em 1858, por exemplo, o presidente venezuelano deposto José Tadeo Monagas refugiou-se na legação francesa em Caracas, e as nações então sediadas na capital – Brasil, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Países Baixos – dissuadiram o governo golpista de cercar ou atacar a embaixada.

Em 23 de janeiro de 1889, os plenipotenciários da Argentina, Bolívia, Paraguai, Peru e Uruguai assinaram, em Montevideu, um tratado de direito penal internacional que reconhecia o fundamento do direito de asilo, a fim de estabelecer regras sobre a matéria.

Estabeleceu-se a inviolabilidade do asilo para pessoas perseguidas por crimes políticos e começou-se a regulamentar tanto o asilo territorial – hoje invocado por milhares de migrantes que se deslocam pelo continente – quanto o asilo diplomático, em embaixadas.

Em 20 de fevereiro de 1928, a Convenção de Asilo de Havana foi adotada na 6ª Conferência dos Estados Americano estabelecendo que as pessoas acusadas ou condenadas por crimes comuns não deviam se beneficiar de asilo diplomático, mas que as pessoas perseguidas politicamente sim.

Em 26 de dezembro de 1933, foi adotada em Montevideu uma convenção hemisférica sobre asilo político, na qual se especificava que o Estado requerente do asilo era responsável pela qualificação dos crimes políticos.

Nestas conferências, e quando da adesão à Sociedade das Nações (antecessora das Nações Unidas) em 1931, o México apresentou a sua Doutrina Estrada (nome do seu então ministro dos Negócios Estrangeiros, Genaro Estrada) sobre a não ingerência nos assuntos internos e nas decisões dos Estados, como no caso da concessão de asilo.

Por último, a Conferência dos Estados de Caracas, em 1954, estabeleceu as convenções hemisféricas sobre asilo diplomático e territorial que ainda estão em vigor, na sequência do longo litígio entre Colômbia e Peru sobre o asilo na embaixada colombiana em Lima, entre 1949 e 1954, do dirigente político peruano Víctor Raúl Haya de la Torre.

O local onde foi instalada a embaixada da Venezuela no Uruguai em 1976 foi declarado sítio de memória histórica. Foi nesse local, em Montevidéu, que a professora Elena Quinteros, opositora da então ditadura militar no seu país, foi raptada em violação da sede diplomática e mais tarde desapareceu. Imagem: Ignacio Álvarez Vigna / Stsf.


Dois casos


O assalto ao Equador tem apenas dois precedentes, e nenhum com a espetacularidade ou a admissão dos fatos que o atual governo de Quito tem exibido.

O primeiro foi a captura de sete requerentes de asilo civis e militares, a 14 de junho de 1956, na embaixada do Haiti na Argentina. Tinham participado numa revolta frustrada dos apoiantes do General Juan Domingo Perón, que tinha sido derrubado no ano anterior.

O poeta Jean Brierre, embaixador do Haiti, e a sua mulher, Dilia Vieux, agiram corajosamente para tentar impedir a captura e, depois, para exigir o regresso dos capturados, o que conseguiram na chancelaria, no meio da noite, em Buenos Aires.

As suas palavras tornaram-se célebres: “não é pelo fato de o Haiti ser uma nação pequena que vai permitir um tal ultraje. Pelo contrário, os países pequenos devem ser respeitados com mais escrúpulos porque são pequenos”. E na sequência: “um pequeno país de negros conseguiu impor o direito sobre a força”.

O outro caso é o rapto na embaixada da Venezuela em Montevideu, em 28 de junho de 1976, da professora uruguaia Elena Quinteros, de 30 anos, opositora da ditadura militar mascarada pelo civil Alberto Demicheli como presidente.

Quinteros, anteriormente detida e levada para a zona por agentes à paisana na tentativa de capturar o seu marido, José Félix Díaz, entrou na embaixada, a partir de uma casa vizinha, saltando um muro divisório.

Os agentes entraram no jardim da embaixada, agarraram Quinteros, espancaram o conselheiro venezuelano Frank Becerra quando ele tentou ajudar a professora e a levaram num carro com placa privada que se pôs em fuga.

A professora entrou para a lista de desaparecidos políticos da ditadura. O governo uruguaio negou a responsabilidade pelo seu rapto.

O governo do então presidente venezuelano, o social-democrata Carlos Andrés Pérez (1974-1979, depois 1989-1993), rompeu relações com o Uruguai.

Algo diferente aconteceu em Havana, quando agentes cubanos entraram na embaixada do Equador, a 13 de fevereiro de 1981, para prender cerca de 30 requerentes de asilo. Nesse caso, porém, fizeram reféns o embaixador Jorge Pérez e o conselheiro Francisco Proaño.

Com exceção destes casos, as embaixadas têm sido escrupulosamente respeitadas e os pedidos de asilo geralmente concedidos pelos governos de todos os quadrantes políticos da América Latina, incluindo as ditaduras que proliferaram até aos anos oitenta.

Daí o forte contraste com a medida adotada pelo governo de Noboa, eleito para completar, de novembro de 2023 a maio de 2025, o mandato do seu antecessor Guillermo Lasso e evitar assim, no estrito respeito às regras escritas do país, uma crise de governança sem recorrer a medidas de força.

Além disso, o Equador foi pioneiro na defesa do direito de asilo, obtendo uma decisão favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos na proteção que concedeu durante vários anos ao ativista australiano Julian Assange na embaixada equatoriana no Reino Unido.

As reuniões da CELAC e da OEA, no calor das críticas desencadeadas contra o assalto à embaixada mexicana, poderão produzir decisões que ratifiquem o valor do direito de asilo e o respeito pelas normas estabelecidas entre Estados, para evitar que os acontecimentos de 5 de abril se tornem um mau precedente.

As críticas de alguns governos, como o Canadá, os Estados Unidos, a União Europeia, o Paraguai e o Peru, foram atenuadas por apelos para resolver as diferenças entre Quito e o México com mais diálogo. A diplomacia hemisférica está mais uma vez sendo posta à prova.

Humberto Márquez é correspondente da IPS na Venezuela.

(Tradução: Tatiana Carlotti)

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