O extremismo de Milei ameaça as conquistas das mulheres na Argentina
Presidente argentino vem impondo um programa ultraliberal, que acaba com todas as regulamentações econômicas que protegem os mais vulneráveis. O resultado, por enquanto, é a aceleração da inflação e a deterioração ainda maior do poder de compra dos assalariados.
POR DANIEL GUTMAN
BUENOS AIRES – O movimento feminista alcançou conquistas significativas na Argentina nos últimos anos, mas todas estão agora ameaçadas pelo governo do ultradireitista Javier Milei, que denegriu as políticas de gênero durante sua campanha eleitoral e, desde que assumiu a presidência em 10 de dezembro, demonstrou estar determinado a colocar suas ideias em prática.
Em um monumental projeto de lei, que em 634 artigos se propõe reformar grande parte da vida econômica e social dos argentinos, Milei busca terminar com a paridade de gênero obrigatória em todas as listas de candidatos para o Congresso Nacional e eliminar a capacitação em temas de gênero, incluída a violência, obrigatória nos escritórios do poder público.
Essas são apenas duas das mudanças impulsionadas pelo governo, que inicialmente fez uma declaração de princípios, quando liquidou o Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidade, criado pela administração anterior com a missão de combater a discriminação e a violência e contribuir para uma sociedade sem hierarquias entre as diversas orientações sexuais.
Essas são palavras sem sentido para Milei que, em 17 de janeiro, durante sua única viagem ao exterior como presidente, escolheu um cenário de grande ressonância internacional, projetado para discutir a agenda econômica global, para provocar com seu discurso extremista contra o feminismo.
“A única coisa que a agenda do feminismo radical se tornou foi uma maior intervenção do Estado para dificultar o crescimento econômico e dar trabalho a burocratas que não contribuíram em nada para a sociedade, seja na forma do Ministério das Mulheres ou de organismos internacionais”, afirmou, durante a Assembleia Anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça.
Os movimentos feministas marcharam na última quarta-feira (24) em diferentes cidades do país, durante a primeira greve geral contra o governo de Milei, convocada pela principal central sindical. A palavra de ordem foi o combate ao corte dos direitos conquistados para as mulheres.
Retrocesso
“Os movimentos feministas tiveram uma explosão na Argentina a partir de 2015 e o fenômeno foi tão poderoso que nos tornamos referência primeiro para a região e depois, para o mundo. Hoje esse mesmo monstro nos devorou: a expansão foi tão potente que começou a gerar resistências”, diz a advogada Natalia Gherardi, com longa formação e experiência no trabalho em prol dos direitos das mulheres da sociedade civil.
“Acreditávamos ter convencido a sociedade de que a agenda feminista é igualitária e benéfica para a maioria, mas hoje vemos como prevaleceu a ideia de que se trata de preocupações de uma minoria”, acrescenta Gherardi, que dirige a Equipe Latino-americana de Justiça e Gênero (ELA), organização que há 20 anos trabalha a favor dos direitos das mulheres em Buenos Aires.
De fato, o discurso contra as políticas de gênero parece ter rendido frutos a Milei, um economista de 53 anos que adquiriu popularidade insultando políticos em programas de TV – cuja imagem se deteriorou por uma persistente crise econômica que dura 12 anos –, fundou seu próprio partido em 2021 e teve uma ascensão rápida para chegar à presidência em 2023.
Desde que assumiu, ele vem impondo um programa ultraliberal, que busca acabar com todas as regulamentações econômicas que protegem os mais vulneráveis. O resultado, por enquanto, é uma aceleração da inflação – que em dezembro foi de 25% em um único mês, segundo dados oficiais – e uma deterioração ainda maior do poder de compra dos assalariados.
“Nós somos o escudo que Milei usa para fazer coisas mais fortes e mais importantes, que são desmontar o Estado e aplicar uma receita ultraliberal que já foi usada outras vezes na Argentina”, afirma María Belén Correa, ativista pelos direitos das minorias sexuais que, em 1993, foi uma das fundadoras da Associação de Travestis da Argentina.
Correa acrescenta: “Em situações de crise, a corda arrebenta pelo lado mais fraco e por isso atacam o feminismo e a diversidade sexual. A direita sempre fez campanha contra as minorias, nos retratando como inimigos do resto da sociedade”.
Ela é a criadora do Arquivo de Memória Trans que, com mais de 15.000 documentos, preserva as histórias da comunidade e de suas pessoas assassinadas ou mortas por obstáculos para acessar a saúde.
“Ni una menos”
O grande fenômeno do feminismo na Argentina ocorreu a partir de 2015, quando o crime de Chiara Páez – uma adolescente de 14 anos que estava grávida e foi assassinada pelo namorado, de 16 anos – levou milhares de mulheres às ruas para exigir o fim da violência machista, em um movimento chamado “Ni una menos”, que cresceu ano após ano e se espalhou por muitos países da América Latina.
De baixo para cima, conquistou a adesão de artistas, políticos, acadêmicos e diversos setores sociais.
Entre outras questões, o movimento conseguiu que a Suprema Corte de Justiça da Nação criasse um Registro Nacional de Feminicídios ou assassinatos de mulheres por razões de gênero.
Segundo o último registro oficial, em 2022 houve no país 252 feminicídios ou feminicídios, o que representa 13% menos que em 2019, quando atingiu o pico de 286 casos.
Outra conquista foi a chamada lei Micaela de capacitação obrigatória em gênero para quem integra os três poderes do Estado. Foi sancionada em homenagem ao estupro e assassinato da adolescente Micaela García – que fazia parte do movimento “Ni una menos” – na saída de uma boate. Agora Milei tenta revogá-la.
O momento culminante do feminismo ocorreu em 2018, quando a pressão social levou o Congresso a votar pela primeira vez a descriminalização do aborto. Foi uma derrota por uma pequena margem, mas o fogo continuou aceso e o aborto foi legalizado em 2020.
Agora, Milei ameaça reverter essa conquista e até mesmo em Davos falou de forma insólita que o mundo está envolvido na “agenda sangrenta do aborto”, como mecanismo de controle populacional cujo objetivo final seria proteger o ambiente da destruição da natureza, algo que para o presidente argentino é uma invenção do socialismo.
“Muitas das conquistas do feminismo perderam o interesse da sociedade argentina, confrontada com necessidades mais urgentes. Hoje, nem sofremos com a indiferença anterior a 2015, mas sim com uma animosidade, uma reação contra o feminismo na Argentina”, reconhece Gherardi.
A continuidade dos programas oficiais referentes à violência machista está em dúvida, porque não houve informação oficial.
Um dos que está em incerteza é o programa Acompañar, que era administrado pelo Ministério das Mulheres e pagava o salário mínimo durante seis meses a mulheres vítimas de violência de gênero, visando fortalecer sua independência econômica.
Atualmente, as mulheres já cadastradas durante o governo anterior continuam sendo remuneradas, mas ninguém sabe se na gestão de Milei o programa Acompañar inscreverá novas vítimas de violência.
Hoje, o movimento feminista tenta se reorganizar com uma agenda social, que inclui a luta pela igualdade salarial e o reconhecimento das tarefas de cuidado. Trata-se de construir para enfrentar uma tempestade que parece estar apenas começando.
Artigo publicado na Inter Press Service.
FOTO: Marcha “Ni Una Menos” em Buenos Aires, 2015. (Foto: Jaluj/Wikipedia).
Correspondente da IPS na Argentina desde 2017, é advogado de profissão e trabalha como jornalista na Argentina desde 1990. Trabalhou nos jornais La Prensa e Diário Popular e durante 18 anos foi membro da redação do jornal Clarín. Em 2000 fez intercâmbio no jornal The Kansas City Star, nos Estados Unidos, enquanto em 2004 recebeu o Prêmio Itália para Jovens Jornalistas. Publicou cinco livros jornalísticos investigativos sobre temas históricos na Argentina. Foi coordenador de comunicação da organização da Anistia Internacional na Argentina e atualmente é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires e do programa de Jornalismo da Universidade de Ciências Empresariais e Sociais.