Os Dois Domingos
POR LUCIANO ELIA. O mote dos atos de destruição dos templos do Estado brasileiro esgotam-se no fim mesmo de destruí-los, e esses atos não exibem qualquer propósito concreto e consequente de tomada operacional do estado. De certo modo, é uma metonímia do que foi o próprio governo Bolsonaro, que ocupou o poder do Estado precisamente…
O primeiro
Domingo, 1 de janeiro de 2023, posse do Presidente Lula e seu Ministério da Diversidade: O bloco uno e compacto de uma Economia capitalista e neoliberal de orientação fascista fica quadripartida em Fazenda, Planejamento, Gestão e Indústria e Comércio, divisão temática que é correlata de uma outra divisão, esta política, introduzindo a diversidade também neste nível, aparentemente administrativo, mas na verdade discursivo. Ministério da Mulher, Ministério da Igualdade Racial, Ministério do Meio Ambiente, Ministério dos Povos Indígenas. A volta do Ministério da Cultura, este não tão inovador assim, mas tradicional e costumeiro em governos racionais e que foi abolido por quatro anos na irracionalidade planejada que imperou no Brasil nesse período de trevas. O ponto alto da posse foi o modo de investidura simbólica da presidência através da transmissão da faixa presidencial, normalmente feita pelo antecessor, que no caso inexistia, pois fugiu como rato de esgoto dias antes da posse de seu sucessor: a faixa foi passada a Lula por sete brasileiros – seis humanos e um cão – sendo uma catadora de lixo, negra, um deficiente físico que é também gay, uma criança, uma cozinheira, um metalúrgico e um professor – e o cão era um mascote da vigília de Curitiba que acompanhou os 18 meses da prisão de Lula. Foi uma cena belíssima, inédita, jamais vista numa posse presidencial. A festa da Democracia não podia ser mais magnífica, e a intensa vividez de tanta beleza não é sem relação com a devastação vivida pelos brasileiros nos últimos 4 anos: sob raios fúlgidos o sol da liberdade brilhou no céu da Pátria naquele instante.
Além do alívio pelo fim de um longo pesadelo infernal, os brasileiros viveram o despertar de um novo Brasil – certamente a ser reconstruído, posto que foi entregue destruído ao novo governo – mas com um entusiasmo que supera o mero reviver de tempos anteriores, expressando, mesmo num cenário objetivamente adverso, uma espécie de sujeito coletivo marcado por um sentimento imediato de triunfo, ainda que a efetivar-se a médio prazo.
Mas a grande massa de desvairados que elegeu Bolsonaro não se extinguiu pela derrota de seu mentor fascista. Pelo contrário, não só não aceita a derrota como grande parte chega a descrer nela, delirantemente, mantendo-se acampada diante de quartéis do Exército em vários locais do Brasil, bradando fraude eleitoral e pedindo intervenção militar. Por menos ideologicamente consistentes, sem qualquer programa ou projeto político concreto a não ser a devastação, não se recolhem e não respeitam a vitória da democracia. E é essa massa que, comandada por um esquema organizado que a sustenta financeiramente, apareceu no segundo domingo, tal inverno surpreendendo o desprevenido verão da nova era.
O segundo
Embora amplamente advertidas pelo anúncio, em redes sociais, de um grande ato golpista, as autoridades governamentais não tomaram as providências mais eficientes para impedi-lo.
Por volta de 15 horas do dia 8 de janeiro, domingo seguinte à fulgurante e inaudita posse de Lula, cerca de 7000 “manifestantes” adentraram a Esplanada dos Ministérios, escoltados pela polícia militar do Distrito Federal, furaram o “bloqueio” que os separava da Praça dos Três Poderes, venceram facilmente a reação da Guarda Legislativa e invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Quebraram vidraças, destruíram móveis, obras de arte e tudo que encontravam pela frente, como uma horda de vândalos saqueadores. Mas entre esses milhares de moleques depredadores e desnorteados, que pareciam esgotar suas intenções no ato mesmo de destruir o patrimônio público, vagando de modo idiota e debilizado após cada ato de vandalismo, havia criminosos com intenções muito claras e precisas, que sabiam onde encontrar o que procuravam, e pareciam instruídos por quem conhecia muito bem os lugares mais recônditos dos palácios governamentais, onde se poderiam encontrar documentos preciosos…
Ao destruir bens materiais, muitos deles valiosíssimos, do patrimônio público, feriam, acima de tudo, e como jamais havia sido feito antes, o coração do Estado brasileiro, as suas insígnias democráticas, o pacto fundador da civilização brasileira, sua Lei, a Constituição, enfim, a Nação e o Povo Brasileiro.
Como entender que cerca de 100 ônibus tenham-se deslocado para Brasília sem nenhum controle ou fiscalização da Polícia Rodoviária Federal, já sob o comando do novo governo? Como entender que o Ministro da Justiça de Lula, mesmo monitorando esta movimentação, não tenha se assegurado de que a polícia militar do Distrito Federal cumpriria as suas determinações de impedir o acesso dessa horda de “manifestantes” à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes? A PM do GDF não apenas não impediu esse acesso como escoltou os cerca de 7000 manifestantes. O Ministro da Justiça “confiou” na palavra do Governador eleito e recém empossado do DF, que no entanto é simpatizante do ex-presidente fascista e nomeou como seu secretário de segurança o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro? Como entender que a Guarda Presidencial, que conta com cerca de 1500 homens e 2 batalhões de choque e cuja missão é proteger o Palácio do Planalto, estivesse ausente no momento do ato anunciado? Como entender, enfim, que o Ministro da Defesa de Lula tenha visitado o acampamento bolsonarista diante do QG do Exército em Brasília, que recebera o afluxo dos ocupantes dos 100 ônibus mencionados, ou seja, cerca de 4000 pessoas, e tenha declarado que os que ali se encontravam eram “democratas pacíficos”?
Não tenho respostas para essas perguntas, que se mantém para mim como signos de um enigma político. O governo terá sido assim pego tão desprevenido porque subestimou os riscos de que o ato viesse a tomar as dimensões que tomou? Mas nesse caso, por que subestimou, se estava advertido das ameaças claramente feitas e da presença, entre as autoridades, de simpatizantes de Bolsonaro, em que, portanto, não cabia depositar confiança?
O extrato dos dois
O que resulta, dialeticamente, do contraste entre esses dois domingos? Um resultado dialético costuma ser designado como síntese, sempre transitória, entre tese e antítese. Entretanto, posto que a relação entre esses dois instantes do atual momento brasileiro, separados por uma semana, não guardam entre si, a rigor, a relação da tese com a antítese, podemos tentar fazer uma análise e não uma síntese entre eles.
Mais do que um ato golpista, estamos diante de um efetivo golpe realizado. Mas cabe a pergunta: de que golpe se trata neste ato? O país e seus mais sagrados valores foram seriamente golpeados, e portanto houve um golpe no Estado brasileiro. Entretanto, podemos dizer que houve uma tentativa de golpe de Estado? Havia a intenção de tomada de poder e correlata destituição do poder constituído? Mais do que isso, havia condições ou mesmo competência para isso? A “fragilidade” da defesa – não casual nem anódina, mas deliberada – por parte das “forças de segurança” permitiu a invasão que, assim, foi mais consentida que conquistada e, caso esta invasão fosse competente e houvesse um claro propósito de perpetrar um golpe de estado, este golpe ter-se-ia consumado.
Isso não significa que o ex-presidente e seu bando de alucinados não queiram o poder e a tomada do Estado. Bolsonaro comprou numerosos segmentos populacionais de eleitores com dinheiro público e recorreu a expedientes criminosos como usar a polícia rodoviária para obstruir o acesso de populações pobres nordestinas, eleitores de Lula, aos seus postos de votação. E só perdeu as eleições, ainda que por margem tão apertada, porque seu adversário era alguém da grandeza e magnitude de Lula. O inconformismo patético e insano das hordas bolsonaristas com a derrota mostra que, além da evidente negação e recusa da realidade – que, na estrutura do sujeito, responde pelo nome de castração segundo a Psicanálise, elas se imaginavam perpétuas no poder e no Estado brasileiro. O que curiosamente se evidencia, contudo, é que essa obstinação não se formula nem traduz em um programa de governo que se diferencie pelo mínimo viés que seja do mais completo desgoverno, com atos deletérios da saúde e da educação, extermínio de políticas de ciência e tecnologia, devastação do meio ambiente, abominação aos pobres tendendo à sua eliminação, desprezo e agressão a toda forma de diversidade de costumes e modos de viver, desejar e amar, enfim, a cartilha já bastante conhecida do fascismo. Tomar o poder para que, senão para continuar esse processo de assassinato do país, para manter-se na blindagem do sigilo secular, no silêncio de toda e qualquer forma de ciência e saber, na prática embalsamada em necropolítica, morte sem pulsão?
O mote dos atos de destruição dos templos do Estado brasileiro esgotam-se no fim mesmo de destruí-los, e esses atos não exibem qualquer propósito concreto e consequente de tomada operacional do estado. De certo modo, é uma metonímia do que foi o próprio governo Bolsonaro, que ocupou o poder do Estado precisamente para destruí-lo e com ele destruir o Brasil. A conclusão resulta da conjunção dessas duas ideias: há sim ânsia pelo poder, mas esta ânsia iguala-se ao poder de destruir. Destruíram-se os mais valiosos objetos, artísticos, mobiliários e imobiliários do governo, e com isso mimetizaram a destruição, em 4 horas, do próprio país feita em 4 anos. Isso não é definitivamente um golpe de estado. O golpe consiste na promoção do caos, visando ilusoriamente a inviabilização do governo Lula, mas sem qualquer eficiência para atingir esse objetivo.
O que resultou foi o fracasso (aparente) deste golpe, que revela que não era isso que se visava (e por isso o fracasso é aparente) e a rápida e fácil desmontagem do ato: a polícia militar e a Força Nacional finalmente entraram em cena prá valer e em menos de uma hora retomaram o controle da situação, evacuaram os palácios dos Três Poderes da República destruídos e saqueados e prenderam cerca de 1500 golpistas. O governo retomou a batuta de maestro da orquestra, determinou intervenção na área de segurança do DF, afastou o seu governador leniente e cúmplice, procedeu à investigação dos organizadores e financiadores dos atos fascistas e anti-democráticos, determinou a desmontagem de todos os acampamentos bolsonaristas que se mantinham há meses espalhados pelo país e pediu a prisão preventiva de Anderson Torres e a repatriação de Jair Messias Bolsonaro, que se encontra não foragido mas fugido nos Estados Unidos, sem direito a lá permanecer por mais de 30 dias, contados a partir de 28 de dezembro, ou seja, além de 28 de janeiro, já tendo alguns deputados americanos solicitado a sua deportação para o Brasil por considerá-lo indesejável em seu país.
Mais do que isso, os três poderes reuniram-se no dia seguinte (a segunda-feira após o segundo domingo), ao qual juntaram-se, convocados por Lula, todos os 27 governadores dos estados brasileiros, numa clara demonstração de coesão, união e força em torno de um pacto democrático, incomparavelmente mais sólido do que antes do desastroso e lamentável segundo domingo.
A questão de fundo: Será que um país com as tensões e conflitos históricos do Brasil, mantidos em espantoso e incomum grau de recalcamento, a ponto desses conflitos raramente conflagrarem-se em confrontos diretos envolvendo morte e derramamento de sangue, pode chegar a resolver – aí sim, em sínteses histórico-dialéticas – suas tensões? O desbragado e despudorado fascismo estilo Bolsonaro, que consegue superar as raias da ignorância e da estupidez – marcas, entretanto, típicas de todo fascismo – não terá ele trazido a furo o tumor pustulento que infecciona e adoece nosso corpo social, que inclui uma escravização da população negra e africana jamais abolida no plano real e concreto, uma independência proclamada pelo colonizador, um “descobrimento” que na verdade encobre a sanha de dominação e eliminação dos povos originários? Por que nossa polícia é das mais violentas do mundo? Por que nosso Estado (e nossos estados) promovem o assassinato diário de um número enorme de jovens pobres e negros não sem antes criminalizá-los? Por que ostentamos o vergonhoso recorde de assassinato de mulheres e da população LGBTQIa+? Por que nossa polícia, nossas cidades – e hoje grande parte de nossa classe política – são dominadas pelas milícias, na descarada institucionalidade cada vez menos clandestina da conjunção polícia-bandido?
Não resolveremos essas tensões sem confronto, e é urgente que elas saiam do estado de recalque histórico em que vem-se mantendo no tempo de nossa História. Talvez o fascismo brasileiro – e aqui a linguagem “bem educada”, própria aos modos burgueses que não sem gosto compartilhamos, precisa, por generosidade à clareza, ceder ao uso de um termo não apreciado neste registro – marcado que é pela escrotidão[1] de seus modos de pensar e agir, venha cumprindo a missão de trazer a pústula a furo, permitindo extirpá-la.
Não houve morte nem derramamento de sangue nos episódios do segundo domingo, mas certamente houve confronto, que fez contraponto à alegria, beleza e emoção do primeiro. E dele resultou uma espécie de efeito bumerangue, no qual o feitiço se volta contra o próprio feiticeiro, um golpe letal não no Estado brasileiro mas no próprio bolsonarismo, na “onda fascista” que nos afogava e que sai muito esvaziada e enfraquecida. Saem fortalecidas a democracia e o viçoso e alvissareiro Governo Lula, com suas reconhecidas propostas de justiça social, mas agora ampliadas para questões não presentes nos dois governos Lula anteriores: além dos negros e das mulheres, já presentes nas políticas públicas, mas agora de modo mais nítido, os povos originários, a diversidade sexual, outros segmentos segregados da população – as pessoas com deficiência, os loucos.
São grandes passos para a extirpação do tumor.
Luciano Elia é psicanalista e pesquisador.
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Nota
[1] O termo escroto deriva da Biologia, onde designa o saco (dito escrotal) da genitália masculina. Este termo condensa alguns significados importantes: a própria virilidade, mas aí associada a um valor depreciativo; o machismo, tema bastante brasileiro, que também requer desconstrução em nossa sociedade e é marca do bolsonarismo (que no entanto frequentemente trai seu oposto de covardia, pouca ou frágil virilidade real) e também faz alusão ao testis, testículos, radical latino do termo “testemunho”: dizer a verdade sobre seus próprios culhões.
Publicado originalmente no site Psicanalistas pela Democracia