O meu 64 ainda sangra. Quer saber por quê?
Tanque de guerra (M41 Walker Bulldog) e outros veículos próximos ao Congresso Nacional durante o golpe militar de 1964 (Foto: Agência Senado)
Até hoje a carrego comigo, como a mais viva lembrança do que foi para um menino, como tantos outros da classe média paulistana, aquele fatídico golpe de 31 de março de 1964.
POR RENATO MARTINS
Não guardo recordação de 64. Era menino quando o golpe aconteceu e tudo o que sei daquele 31 de março aprendi nos livros, filmes e na militância.
De 68 lembro-me vivamente de um livro de fotos do Maio Francês. As barricadas nas ruas de Paris, os estudantes da Sorbonne, a ocupação da fábrica de automóveis Renault.
Meu avô, Mário de Souza Lima, professor da USP, mantinha uma sortida biblioteca em seu apartamento da Av. Paulista com a Rua da Consolação, em um edifício onde funciona até hoje o célebre restaurante Riviera, ponto de encontro da turma da pesada de então. Aos domingos a família se reunia religiosamente naquele amplo apartamento e eu me distraia remexendo a sua biblioteca.
Minhas lembranças de 68 vieram daí, dos livros do velho professor. Recordo-me que aquele ambiente de afeto familiar às vezes era interrompido por calorosas discussões políticas, que netos e netas ouvíamos calados.
Difícil discernir nessas lembranças o que de fato acontecia. A coisa se tornou mais clara a partir de 72, com a prisão do Sérgio e da Mayume. Filho mais novo do professor Souza Lima, meu tio Sérgio e sua esposa Mayume já haviam passado por Brasília, onde deram aulas na UnB e desenvolveram projetos nas superquadras do Plano Piloto, considerados marcos da arquitetura modernista brasileira.
Ambos moravam na Rua Caiubi, com seus dois filhos pequenos, meus primos Silvio, já falecido e Mário, músico multi-instrumentista. Do apartamento deles se enxergava o campanário do convento dos freis Dominicanos… Deste apartamento, numa madrugada do pacato bairro de Perdizes, eles foram sequestrados pela equipe do delegado Fleury. O horror e a violência dessa ação dramática, que não vi nem presenciei, nunca me saíram da memória.
Até hoje a carrego comigo, como a mais viva lembrança do que foi para um menino, como tantos outros da classe média paulistana, aquele fatídico golpe de 31 de março de 1964.
Barbaramente torturado, Sérgio foi acusado de abrigar o procurado Carlos Marighella no seu apartamento da Caiubi. Foi condenado a quatro anos de prisão no então Presídio Tiradentes. Mayume foi solta, provavelmente porque os militares preferiram evitar a repercussão internacional da tortura e prisão de uma arquiteta japonesa naturalizada brasileira.
Desde então, sempre que passo defronte do que restou daquele presídio, há muitos anos demolido, sua arquitetura lúgubre me vem à lembrança. Recordo-me então do Sérgio, da Mayume e de tantos outros brasileiros que resistiram corajosamente ao golpe militar de 64. E os reverencio. E os agradeço por haverem lutado.
Por eles, que já partiram, minhas lembranças ainda sangram!
31 de março de 2023
Sociólogo. Foi chefe da assessoria de Relações Internacionais da Secretaria-Geral Presidência da República (2006 a 2011). Ex-presidente do FoMerco (2017-2019). É professor do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política da UNILA (2010).