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Lutar pela vitória de Lula da Silva: reorganizando o campo da esquerda

Lutar pela vitória de Lula da Silva: reorganizando o campo da esquerda

O Brasil vive um contexto no qual o intento de preparação de um golpe de cariz neofascista está em curso.  

O principal alicerce deste intento está solidamente implantado nas forças armadas (FFAA), com pilares em setores econômicos e uma miríade de segmentos apresentados adiante, embora sem a organicidade de 1964 (em que frações burguesas dominantes, FFAA, Igreja Católica, Meios de Comunicação, EUA, conspiraram de modo coeso).

As atuais sinalizações internacionais tornam-se ainda mais difíceis de interpretar, visto o crescente engajamento dos EUA na guerra da Ucrânia afastando, ainda mais, o Brasil das prioridades imediatas do governo Biden. Não são irrelevantes os recados que ecoam as manifestações típicas das orientações dirigidas à uma “república das bananas” de interlocutores relevantes, como William Burns, diretor da CIA, de que o processo eleitoral deve ser respeitado.

O propósito deste pequeno texto é sistematizar notas metodológicas e algumas proposições com o objetivo de discutir desafios estratégicos da esquerda socialista. As eleições de 2022 estão inscritas em um quadro de dilacerantes embates e contradições no qual a esquerda pode ocupar um lugar de quase irrelevância se não lograr um salto organizativo, programático e pedagógico junto às massas pauperizadas e desalentadas, assim como às frações que compõem as categorias de maior protagonismo. Trabalhadoras e trabalhadores da educação e da saúde, de setores produtivos em acelerada transformação e de empresas com participação do Estado e que correm severo risco de privatização, como a Eletrobras, assim como do MST, movimentos socioambientais, antirracistas, LGBTQI+ são cruciais se atuarem de modo organizado e consciente.

Teórica e metodologicamente é imprescindível particularizar a luta contra:

i – o “bolsonarismo” compreendido aqui como um campo relativamente difuso que abrange: Aparelhos Privados de Hegemonia (APH) da extrema direita, como Millenium, Fórum da Liberdade, Instituto de Estudos Empresariais, Instituto Mises Brasil, Rede da Liberdade (especialmente atuantes nas redes como nódulos do sistema de robôs ‘calibrados’ pelos algoritmos); organizações neonazistas e neofascistas em geral; youtubers de extrema direita; Rotary; instituições (e frações) religiosas fundamentalistas (a exemplo de Silas Malafaia da Assembleia de Deus Vitória em Cristo); setores vinculados à segurança estatal – militares, policiais federais, estaduais e guardas municipais –; grupos milicianos; empresas de segurança privada (CINEL); clubes de tiros (2.070 no país, apenas em 2021 foram criados 457) e lojas de armas (vide os 600 mil novos proprietários de armas que, potencialmente, podem se associar ao processo de fascistização do país); empresários e associações patronais diversas que atuam no núcleo duro das organizações da extrema direita (nos moldes da APROSOJA e da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas) e, não menos relevante, milhões de pessoas imbuídas de disposições de pensamento condizentes com as ideologias neofascistas e de extrema direita; 

ii – o governo Bolsonaro estrito senso, abrangendo a aparelhagem do Estado no âmbito do Executivo (inclusive FFAA,  “setor de inteligência” e ocupação de nichos e cargos por mais de seis mil militares), BACEN  com autonomia e alta direção da Economia, ministérios diversos, acrescido de suas ramificações no Judiciário, MP, TCU, CGU e, especialmente, no Legislativo (sob pleno controle do Centrão deslocado de modo importante para a extrema direita e capitalizado com o orçamento secreto), influência que se espraia em governos estaduais, nas assembleias, prefeituras e câmaras de vereadores (em que a extrema direita saiu consideravelmente fortalecida do pleito de 2020).

iii – o bloco de poder que, após 2016, de maneira diferenciada, vem praticando uma saída autocrática para a crise em curso. Diversas frações burguesas lograram condições excepcionais de acumulação no período Bolsonaro. As 240 maiores empresas de capital aberto tiveram acentuado crescimento na taxa de lucro no atual governo, tanto as financeiras, como as não financeiras. Os dividendos auferidos pelos proprietários das 219 maiores empresas, em 2021, foram de R$ 218 bilhões, ¼ do que receberam 88 milhões de pessoas. Grandes grupos financeiros e econômicos têm expressado apoio ao seu governo, como Safra, BTG, Bradesco, Multiplan, Cosan, grandes redes de varejo etc. É preciso problematizar a crença de que a burguesia precisa ser socorrida do governo Bolsonaro: seja de modo direto, pela enorme taxa de acumulação, seja por meio indireto, por circunscrever a agenda econômica e política aos marcos do capitalismo dependente, embora com variações relevantes no manejo da autocracia burguesa, o bloco no poder se encontra em situação clara de supremacia. A crença de que o Estado Maior do Capital vive uma crise orgânica que ameaça seus interesses como ‘classe para si’ tem de ser cuidadosamente problematizada.

O padrão de acumulação do capital catalisado pelo bolsonarismo e pelo governo Bolsonaro possui inédito potencial destrutivo da vida da classe trabalhadora, com visto ao longo da pandemia e da generalização da fome, dos povos indígenas, das frações mais expropriadas. Caso Bolsonaro seja reeleito irá corroer o que resta de soberania e de conquistas da Constituição de 1988.  Por isso, os três eixos resumidos formam uma totalidade que pode acelerar, de modo feroz, o processo de fascistização. Embora indissoluvelmente interligados, ignorar as suas particularidades (e seus conflitos internos) pode comprometer a materialização de estratégias e a eficácia de lutas táticas. A consideração das especificidades dos terrenos de combate é imperiosa para combinar ações que adensem a luta contra a reeleição de Bolsonaro, assegurando expressiva vitória eleitoral de Lula da Silva e, prospectivamente, que fortaleça a construção e a efetivação de agendas das esquerdas.

I – PROPOSIÇÕES RELATIVAS AO BLOCO E AO BOLSONARISMO

O exame da movimentação dos sujeitos que operam, de modo mais destacado, nos três eixos citados permite concluir que o espectro de apoio ou, pelo menos, de expectativa de apoio a reeleição de Bolsonaro é relevante demais para ser desconsiderado.

1. O bolsonarismo (eixo 1) é mais amplo do que Bolsonaro; entretanto, os segmentos que conformam este campo logram um lugar de imenso poder com Bolsonaro no governo. Sem Bolsonaro, o bolsonarismo que se apoia e se nutre do governo (para seus próprios fins e, também, para o fortalecimento de Bolsonaro) poderá sofrer significativa desarticulação em decorrência da perda da indução e de proteção governamental e estatal. Medidas como o abandono de políticas ambientais e de reconhecimento dos povos indígenas, a flexibilização e as isenções tributárias para a compra de armas por particulares e por empresas de segurança; os vários intentos de exclusão de ilicitude para favorecer policiais e militares; a edição de leis (ou projetos de lei) que favorecem instituições religiosas, como a liberação de cultos em pleno pico da pandemia, isenções e perdões tributários; introdução do homeschooling, alteração nos métodos de alfabetização e na política de livros e materiais didáticos, assim como escolas cívico-militares e a nomeação de reitores aliados; a publicação de decretos que concedem ‘graça’ a notórios milicianos que estão atuando na preparação do golpe; reajustes salariais diferenciados para militares e policiais; benefícios exacerbadamente generosos para os militares e policiais na reforma da previdência social;  uso da máquina governamental em prol desses agentes (gabinete do ódio e ramificações); orçamento secreto para ser utilizado pelo Centrão, entre tantas outras medidas nutrem os segmentos bolsonaristas. A lista é longa e precisa ser sistematizada.

2. O intento abertamente autocrático e de cariz neofascista de frações do bloco no poder se fortalece com a reeleição de Bolsonaro, o que pode ser aferido por meio do exame da atuação dos APH que vêm sustentando o governo; pelo mapeamento das isenções tributárias, pela flexibilização da legislação e normas socioambientais, assim como debilitamento do IBAMA  e do ICM-Bio; pelo desmanche dos territórios indígenas em prol das mineradoras e pelo esfarelamento da FUNAI; pelos benefícios específicos de importação e exportação para determinados setores desde as isenções tributárias para as empresas exportadoras, isenções que, em 2022, devem chagar a R$ 367 bilhões, conforme Unafisco, isso sem acrescentar as isenções sobre lucros e dividendos; pela flexibilização de direitos trabalhistas (Carteira verde e amarela etc.); pela extorsão tributária do trabalho, e pelas medidas educacionais em prol de segmentos de sua base de apoio etc. Aqui também a lista é longa e igualmente precisa ser sistematizada.

3. O bolsonarismo está ciente de que o seu futuro próximo depende da continuidade do governo Bolsonaro e fará de tudo, dentro e fora da ordem legal, para alcançar tal objetivo. Nesse sentido, é importante inventariar as ações de forças policiais, paramilitares e militares; assim como de ‘empresários’ e associações a eles vinculados, objetivando a conspiração e a criação de condições para efetivação de um golpe ditatorial (iniciando por movimentos de desestabilização das instituições como do STF, abrindo as vias para o Estado de Sítio ou algo assim) caso falte apoio popular a sua reeleição. A escalada de violência contra as instituições que se opõem ao golpe e os militantes de esquerda sinalizam que a preparação do golpe ganha novos contornos.

4. Outras frações do bloco têm indicado que podem vir a prescindir do governo Bolsonaro. Estas frações têm de ser identificadas e caracterizadas em seus propósitos políticos. Existem divisões na “Faria Lima” (Josué Gomes da Silva versus Skaf, Fiesp), no Agro (exemplo ABAG versus Aprosoja), nos bancos e grupos financeiros (Itaú-Unibanco versus grupos em torno de Guedes), nas grandes redes de distribuição de mercadorias (Luiza Trajano e Havan), nos meios de comunicação (Organizações Globo e FSP versus Record, SBT, JP); entretanto, será necessário esclarecer o que são divergências fortes e não passíveis de consensos pelo alto e o que são divergências epidérmicas e passíveis de pactuação.

5. Preliminarmente, é razoável propugnar que dificilmente os setores dominantes atuarão de modo uníssono em 2022, diferente, por conseguinte, de 2018: as alternativas eleitorais são muito distintas e irão alterar a correlação de forças entre os setores burgueses. É caricato afirmar que Lula da Silva fará um governo socialista, como querem os bolsonaristas e, contraditoriamente, alguns apoiadores do ex-presidente. Mas os rumos do país serão substantivamente distintos com Lula da Silva ou com Bolsonaro. A clivagem é muito relevante. É um erro grave inserir toda a base econômica na claque bolsonarista (vide a complexa rede de aparelhos privados de hegemonia empresariais (APHe) que sinaliza a necessidade de não continuidade do governo B.), assim como é um equívoco supor apoio uníssono a Lula (a grande maioria dos APHe apoiou o golpe autocrático de 2016 e, ainda que de modo sinuoso, a eleição de B. no segundo turno em 2018, exceto Instituto Ethos, Avina e, de certo modo, GIFE), pois a depender das benesses e dos interesses superiores de classe as posições podem ser modificadas. Por isso, importa examinar as motivações e condicionalidades dos apoios e acordos. Uma pista para isso é examinar como foi forjado o consenso do andar de cima em prol do golpe de 2016 e, ao mesmo tempo, examinar como se comportaram (e vêm se comportando) os principais APH empresariais ao longo do governo Bolsonaro, especialmente nos momentos mais críticos da opção pelo ‘efeito rebanho’ que ceifou milhares de vidas desnecessariamente, da postergação criminosa das vacinas e, especialmente, do intento de iniciar o golpe em setembro de 2021.

6. Se os pronunciamentos dos porta-vozes do andar de cima em eventos voltados para o grande capital são indicadores das posições políticas destes segmentos, o apoio de frações do bloco que já sinalizaram adesão à campanha de Lula da Silva parece estar condicionado, grosso modo, à manutenção dos pilares da agenda da Ponte para o Futuro, embora com flexibilizações desejadas pelo próprio capital, como na EC 95/2016.

II- PROPOSIÇÕES RELATIVAS À ESQUERDA

a) A esquerda, especialmente a esquerda socialista, está diante de dilemas de enorme importância. Possui uma responsabilidade diferenciada na criação de condições que resultem na mudança da correlação de forças nas lutas de classes, em prol da classe trabalhadora. A curto e médio prazos, a esquerda não pode deixar de assumir lugar de destaque, isto é, de real relevância, no intento de impor uma forte derrota eleitoral a Bolsonaro. Nenhuma fração burguesa dominante atuará resolutamente nesse sentido, especialmente se B. ampliar sua competitividade. O núcleo duro da campanha nas ruas, nas fábricas, nos bairros, nos sindicatos, no movimento dos entregadores, nas lutas socioambientais e pela reforma agrária popular terá que ser da (imprescindível) frente de esquerda como núcleo estratégico na luta de classes e na formação de um outro senso comum. Não se trata, por conseguinte, de adesão passiva dos sindicatos e movimentos sociais à campanha de Lula da Silva, mas de atuar como frente social com identidade própria para impedir a fascistização do País, elegendo Lula e barrando intentos de desestabilização de seu governo pela extrema direita.

b) A atuação da esquerda caminhará no fio da navalha. A derrota eleitoral de B. e do bolsonarismo e suas ramificações, não será possível sem a chamada frente ampla. Ou seja, se o objetivo é derrotar B. será preciso interagir com a frente ampla majoritariamente de centro direita. O debate de fundo é como se dará (e está se dando) essa relação contraditória. O risco, em virtude da atual fragilidade da esquerda socialista, é que esta atue como uma força marginal na frente ampla e acabe diluída em seu interior. Não pode causar surpresa que a frente ampla atuará em benefício dos representantes do capital, a exemplo, na educação, das corporações financeirizadas e do Todos pela Educação; dos banqueiros sobre o BACEN e os postos-chave da Economia; da definição do programa econômico em sintonia com o mercado (Confederações patronais sobre a área trabalhista, ABAG e CNA e a pauta do agronegócio etc.). Entretanto, haverá contraponto com força social? Uma pergunta estratégica para a esquerda deve contemplar a questão: Como, no processo da campanha, será possível agregar forças, formar coalizões, unidade de ação que possibilitem real envergadura à frente de esquerda?

c) Está explícita aqui a defesa da não diluição da frente de esquerda na frente ampla, em nome de um raso pragmatismo eleitoral. Sem a existência da esquerda, a campanha de Lula da Silva corre risco e a agenda governamental pode ser tão limitada que rapidamente a frustração se alastrará entre os trabalhadores precarizados, uberizados, nos ditos microempresários, nos servidores, e na classe que vive do próprio trabalho e é explorada. O fascismo pode pescar nessas águas.

d) A necessária revolução democrática somente será levada adiante pela esquerda com lutas massivas e organizadas, fortemente protagonizadas pela classe trabalhadora, abrangendo os intermitentes, precarizados, plataformizados, os autoempreendedores etc.; assim como os movimentos socioambientais, as lutas por solidariedade, as coalizões antirracistas, LGBTQI+. Unicamente com a frente de esquerda será possível realizar ações com envergadura capazes de alterar favoravelmente a correlação de forças em prol da classe trabalhadora e no enfrentamento resoluto ao bolsonarismo e ao neofascismo.

e) Para levar adiante lutas contra o capital, e especialmente suas expressões concretas na formação econômico-social, será imperioso trabalhar para diferenciar a frente de esquerda da frente ampla. Se a frente ampla já se encontra avançada na ótica do capital (vide Alckmin), restam imensos desafios para forjar uma frente de esquerda com projeto próprio, autônomo, com agendas objetivas e vívidas, condições para serem mobilizantes, capazes de conjugar dialeticamente revolução dentro da ordem e revolução fora da ordem.

III- AÇÕES TÁTICAS E ESTRATÉGICAS

a) É irrealista, perigoso e rudimentar considerar um dado da realidade que Bolsonaro está derrotado (ou pior, que tanto faz quem vencer) e que, por isso, a luta pode estar focalizada exclusivamente no combate às ações do Estado Maior do capital, ignorando o bolsonarismo e forças afins. Já foi assinalado aqui que o bolsonarismo e Bolsonaro catalisam mudanças genocidas no padrão de acumulação.  Como a experiência de Mussolini nos ensina, o fascismo requer um processo de fascistização. Na eventualidade de um segundo Bolsonaro, haverá um salto qualitativo de enorme envergadura (com a possibilidade de movimentos de massa) para a constituição de um regime propriamente fascista. Um maior controle do STF, do Congresso, das FFAA, de milicias armadas e do fundamentalismo religioso podem lastrear um processo frente ao qual hoje a classe trabalhadora que está na linha de frente das lutas contra o capital não possui capacidade de enfrentamento sistêmico, inclusive frente à violência armada do bolsonarismo.

b) Por isso, é imperioso derrotar Bolsonaro. A despeito da vontade imediata de cada sujeito ou grupo, a alternativa real é a candidatura Lula-Alckmin. É uma alternativa pró-capital. Provavelmente, o governo Lula da Silva fará poucas concessões estruturantes (que, no entanto, podem ser importantes, a exemplo da reforma trabalhista, da revogação da EC 95 e da interrupção das privatizações de empresas estratégicas) e não será um governo de esquerda como muitos de seus apoiadores difundem. No entanto, sem Bolsonaro, e com o bolsonarismo enfraquecido, as agendas da revolução democrática (conjugando democracia política e democracia econômica) podem avançar se a frente de esquerda for constituída.

O apoio à eleição de Lula da Silva (e contra as ações de desestabilização da extrema direita), terá de ser ativo, sem vacilações e engajado, porém com autonomia de classe.
A esquerda socialista não deve estar diluída na frente ampla. Deve lutar contra Bolsonaro e a favor de Lula da Silva com base em seu próprio programa (no qual a derrota de Bolsonaro é um pressuposto forte e parte da estratégia de composição da frente anticapitalista) com autonomia de classe e disposição de retomar a luta socialista.

Rio, 23 de maio de 2022

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