Viver, morrer e reviver
Por coincidência (ou não), dois filmes estreiam nos cinemas nessa semana de feriado da Páscoa, símbolo de ressurreição para os católicos. Ambos abordam questões complexas e oportunas: a morte, a memória, possibilidades de novas vidas, e evocam temas contemporâneos que afligem as populações. A depressão, a ansiedade originada pela competição desmedida entre indivíduos; a exposição pública superdimensionada de crianças e adolescentes nos meios digitais, a ganância pelo dinheiro e pelo sucesso.
De viés, a necessidade de revisão de eventos políticos passados, componentes de um mundo que morreu, mas que deve ser revisitado para que se possa seguir adiante sem cometer os erros e desvios fatais de antes. Morrer, viver e rememorar para reviver.
Um deles, Vidas Passadas* (Past Lives), é o primeiro longa-metragem de Celine Song, de 36 anos, dramaturga, roteirista e diretora sul-coreana/canadense radicada nos Estados Unidos. Foi indicado como Melhor Filme e Melhor Roteiro Original para o Oscar deste ano, ganhou o prêmio de Melhor Filme independente do Spirit Awards 2024, e um mês depois de exibido nos cinemas americanos já apresentava bilheteria de cerca de dez milhões de dólares.
Vidas Passadas é um poema fascinante inspirado em uma experiência de vida da própria Celine Song, debruçado sobre a trajetória de uma menina e de um garoto, dois amigos de infância, ao longo de 24 anos. Ela, imigrante coreana, já adulta, vive em Nova Iorque como escritora, e ele é um engenheiro que permaneceu vivendo em Seul depois da emigração da família da garota que era a sua paixão infantil para os Estados Unidos. Os dois combinam de se reencontrar e logo reconhecem como continuam especiais um para o outro.
Os atores Greta Lee e Teo Yoo são excepcionais, sensibilidade literalmente à flor da pele nos diálogos econômicos e nos silêncios prazerosos. Assim também como o jovem personagem de Arthur, o marido americano da moça, vivido pelo ator John Magaro. Os três têm um encontro memorável em um jantar num restaurante italiano do Bronx.
O filme parte do conceito do in-yun coreano, mescla da noção de destino com a ideia de deliberação e de sentimentos vividos em um passado remoto talvez até anterior às suas próprias vidas mas que resulta em resquícios da essência do que somos no presente. Experiências passadas, muito antigas que determinam uma existência inteira.
O Primeiro Dia da Minha Vida** (Il Primo Giorno Della Mia Vita) é um drama do novo cinema italiano, do diretor, roteirista e escritor Paolo Genovese, de 56 anos, Prêmio David di Donatello e também autor do filme Os Oportunistas, de 2018. Nele, um misterioso homem, em Roma, oferece a quatro pessoas à beira de cometerem suicídio (homens, mulheres e uma criança) a possibilidade de antevisão do que seria a vida no seu entorno com ou sem a existência deles. O objetivo desse desconhecido, um símbolo da razão, lucidez e solidariedade, é convencê-los a reavaliar suas decisões de suicidarem-se diante da situação de desespero. O filme, um exemplar do realismo mágico, é baseado em livro do próprio Genovese e é regado com a bela canção de Leonard Cohen, Hallelujah.
O desconhecido lhes oferece sete dias para reavaliarem sua decisão de autoimolação para se conscientizarem do que podem perder caso escolham a morte. O personagem misterioso é trabalhado pelo excelente ator Toni Servillo (do filme A Grande Beleza), intérprete emblemático do citado novo cinema produzido na Itália. Servillo carrega o filme nas costas.
“O personagem é mais do que um barqueiro de almas. Ele convida os quatro suicidas a redescobrirem uma parte de si mesmos”, diz Servillo. Mas destaca “a força que os personagens encontram uns nos outros e isso é fundamental na nossa época atual”.
Já Genovese diz ao jornal La Stampa que não pensava em transformar seu livro em filme. “Comecei a escrevê-lo porque tive uma vontade urgente de contar a história. Decidi filmá-la depois de ouvir dezenas de pessoas que se disseram agradecidos por lê-la, porque teria sido um recado de esperança para elas. Talvez hoje precisemos de histórias que nos deem coragem”.
Se Vidas Passadas é um poema irretocável do ponto de vista cinematográfico e espiritual, O Primeiro Dia da Minha Vida se mostra com certa frequência confuso e até pueril em algumas sequências.
Os dois filmes são sugeridos considerando os seus alertas. “O último dia pode também ser o primeiro de uma nova vida, do renascimento e da redescoberta de si mesmo”, avisa o italiano, otimista.
Já Vidas Passadas especula que relembrar e rememorar, ao contrário de remoer, é peça obrigatória para entender, na dimensão do tempo, o que se passou e poder agir com maior precisão no presente.
*Na Claro TV+
**A partir de 28/03 nos cinemas
Jornalista.