Se Assange cair, o jornalismo cairá junto com ele
O que faz do documentário ‘Ithaka’ ser um filme especial é a sua linearidade, embora sempre provocativa, que captura a atenção do espectador mesmo daqueles mais distantes do assunto
O documentário de uma hora e 46 minutos Ithaka – A Luta de Assange é imperdível. Um filme comovente, sem ranço demagógico e realizado com a seriedade que merece a atuação dos hackers na sociedade contemporânea. O assunto, ampliado, é motivo de profundo debate que ainda não vem ocupando o destaque merecido, mas se faz necessário nas principais discussões políticas desse novo mundo que nasce diante dos nossos olhos.
Dirigido pelo inglês Ben Lawrence, fotógrafo e conhecido diretor de comerciais de TV e longas-metragens, de 50 anos, com filme premiado em alguns festivais independentes, o doc segue os recentes quatro anos do jornalista Julian Assange, preso político no pavilhão de doentes terminais e de suicidas potenciais da prisão de segurança máxima de Belmarsh, em Londres. Nesse setor, no ano passado ocorreram seis suicídios e um assassinato.
Atualmente, o jornalista fundador do Wikileaks em 2006 aguarda a decisão dos britânicos em resposta ao último recurso impetrado pelos seus advogados contra uma possível extradição para os Estados Unidos, onde pode ser condenado a uma pena de até 175 anos. Ou seja, prisão perpétua.
O doc vem sendo apresentado a várias plateias brasileiras esta semana e entra em cartaz nos cinemas no próximo dia 31. É ancorado na luta do pai de Assange para libertá-lo; do australiano John Shipton, de 76 anos, e da mulher de Julian, a advogada Stella Morris Assange. Ela é inglesa, faz parte da equipe da defesa do marido e vive em Paddington. É mãe dos dois filhos do corajoso autor da divulgação de documentos secretos do governo americano sobre a invasão do Afeganistão e do Iraque, do Cablegate e dos abusos de militares, em Bagdá, em 2007. Alguns desses vídeos, divulgados pelo Wikileaks, rodaram o mundo, e são de uma violência gratuita impressionante.
No Brasil, Samira de Castro, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj, sublinha que há uma narrativa de criminalização do jornalismo, paralela ao caso Assange. “Não podemos permitir que a prisão de Assange se baseie na divulgação de documentos no site Wikileaks no qual ele era editor, mostrando as ações secretas de invasão ao Iraque e Afeganistão. Isso é um trabalho jornalístico em sua essência”.
Para o jornalista Luis Nassif, com justa razão, “Delgatti é um novo caso Assange”.
O que faz do documentário Ithaka ser um filme especial é a sua linearidade, embora sempre provocativa, que captura a atenção do espectador mesmo daqueles mais distantes do assunto. O filme mantém o mesmo tom da postura discreta e educada de Shipton, um construtor de casas na Austrália recém-aposentado, que agora roda o mundo – já esteve em Nova Iorque, em Berlim, no parlamento alemão, em países europeus – tentando salvar a vida do filho. “E não vou parar”, ele avisa.
Em Ithaka, ele comenta que “gosta de construir coisas – casas para abrigar as pessoas”. Sua semelhança física com o filho é acentuada: o mesmo meio sorriso triste permanente, a expressão corporal, a serenidade. “Os apoiadores, família e amigos falam por ele. Ele não pode falar”, Shipton sublinha. “A tortura pública é ainda mais contundente”.
A atuação de Stella, de John Shipton, (e do meio irmão Gabriel, produtor do filme, que acompanha o pai) pede toda atenção para a importância da imprensa livre: ” A qualidade de uma sociedade se baseia nas informações às quais ela pode ter acesso; e essa qualidade se define na medida das informações que são dadas a ela”.
Em outro momento, o alerta: “A extradição de Assange é o colapso do poder do jornalismo”. Este caso, como o de Snowden, assim como no Brasil o caso Delgatti, no entender de jornalistas brasileiros “trouxeram mais uma vez à baila o tema relevante: o direito da opinião pública às informações que correm nos escaninhos do poder e afetam diretamente pessoas, nações e direitos dos indivíduos”.
Questões colocadas por Stella Assange, no doc: “O que este caso significa para a liberdade de imprensa? Que jornalismo é crime? É controlar a democracia? Com uma condenação a Assange os jornalistas vão pensar duas vezes antes de vazar. O que está em jogo é a liberdade de imprensa em todo o mundo. A extradição de Assange é o colapso do poder do jornalismo”.
Vários jornalistas, de modo geral, que durante dez anos repercutiram as vozes de seus donos contra Assange agora percebem que se “Julian, como editor que é, for acusado de espionagem, o poder da imprensa tradicional está ameaçado; e esses veículos podem ser reduzidos a meros meios de propaganda governamental”.
O mundo, em suspenso, aguarda o destino a ser dado ao jornalista australiano cuja saúde física e mental se deteriora dia a dia, como é acentuado no documentário do qual ele não participa. Mas o entorno dele causa tanto impacto quanto a sua ausência como protagonista. Que John Shipton e a família libertem o filho que partiu para a sua odisseia e o tragam de volta à casa, em Ithaka, e incólume.
*Ithaka – a Luta de Assange entra em cartaz em grande circuito de cinemas no próximo dia 31.
Jornalista.