Psicanálise não é doutrina, é praxis clínica
Lacan havia repetido ao longo de sua obra que a psicanálise opera sobre um sujeito. Isso admitido, todo o resto está estabelecido: seja esse sujeito o sujeito cartesiano, seja determinado pela ciência, seja representado por um significante para um outro significante. O que significa a Psicanálise de fato?
POR IVANISA TEITELROIT MARTINS
Lacan havia repetido ao longo de sua obra que a psicanálise opera sobre um sujeito. Isso admitido, todo o resto está estabelecido: seja esse sujeito o sujeito cartesiano, seja determinado pela ciência, seja representando por um significante para um outro significante. O que significa a Psicanálise de fato?
Freud apenas dispunha da linguagem adulterada da ciência ideal, o que fez com que a psicanálise se servisse da filosofia. Freud se confiara à cultura humanista – literatura, história, arqueologia, recursos que não eram suficientes, diante da vitória da democracia liberal dos engenheiros e dos comerciantes e do mundo WASP que reunia nos Estados Unidos e na Inglaterra, em nome da ciência ideal, o que havia de mais hostil ao pensamento livre.
A filosofia depende da filosofia grega que está vinculada à episteme. É a episteme, em sua estrutura de theoria distinta da praxis, que vem a ser autorizada pela própria filosofia como o que funda o mundo como o compreendemos. O próprio nome filosofia diz respeito aos fundamentos de tal mundo. A filosofia é finita, a filosofia não cabe no universo infinito. A psicanálise foi pautada pela antifilosofia que somente o matema pôde legitimar. Antifilosofia é um outro nome do matema. A tese é: ‘existe uma exclusão mútua entre a filosofia e o matema da psicanálise’.
A psicanálise tomou emprestadas as letras matemáticas, no que elas articulam de suspensivo, isto é, de impossível: o infinito como inacessível, a teoria do número como travessia incessante do zero, a topologia como teoria de um “n’espaço”, arrancando a geometria de toda estética transcendental. Rejeita-se o encadeamento das razões que é próprio do imaginário, reduzindo a matemática a suas simples letras, o que o matema propõe de maneira explícita.
Não se renuncia a Galileu, pelo contrário, reafirma-se o doutrinal da ciência, exceto que a matemática implicada na matematização é inteiramente depurada de tudo o que lhe restava de Euclides e do more geometrico.
Há uma mudança de discurso. Em L’étourdit a matemática não é mais do que letras, mas as letras de ciência não são mais do que matemática estrita, isto é, cálculo. A linguística e o estruturalismo não mais favorecem uma sustentação diante da mínima escrita matemática. O matema é o indício, o efeito e o nome dessa mudança. O discurso da análise matemática é idêntico ao discurso da análise freudiana. Do número infinito de demandas, que restam não contabilizáveis, passa-se ao desejo, ao impossível de contabilizar.
Já os trocadilhos homofônicos fazem jogo de homofonia, são como matemas articulados pela própria alíngua, marca da literalidade da letra de um matema extenuado. Sua multiplicação contrabalança a monstração (monstração do verbo latino monstro-monstrare, que significa mostrar) silenciosa dos nós. Porém cada um desses jogos devora o outro. O poema, polimerizado ao infinito ilimitado de alíngua, explode fixamente sobre o abismo. O nó borromeano é o suporte desse matemático, porque não é nada mais nada menos do que isto: basta que uma rodela se solte para que as outras se dispersem, uma propriedade melhor e talvez o único análogo da propriedade definidora do literal como tal. O nó borromeano revela-se próprio para estruturar ou para matematizar um ínfimo doutrinal sempre retomado desde a constituição da psicanálise, na medida que as letras R, S, I tornaram-se verdadeiras letras inscritas no dispositivo borromeano sob uma forma trilítera.
Logo após ter introduzido o nó, Lacan lança uma hipótese: “O inconsciente, também não entro nele, como Newton, sem hipótese. Minha hipótese é de que o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo sujeito de um significante”.
Se o significante emerge da vacilação entre o velar e o desvelar, como se fosse o único capaz de ultrapassar o entre-dois: dizer e não dizer, a heterologia percorre a obra de Lacan desde Freud apesar de a doutrina do nó não passar de uma versão entre outras como causa. Lacan se apoia em o Tractatus de Wittgenstein: é preciso calar-se sobre o que não se deixa dizer; é preciso mostrar aquilo sobre o que apenas podemos nos calar. Lacan se cala e Lacan mostra. O que é mostrado em silêncio através do entrelaçamento dos nós implica que diante de um matema extenuado somente se pode mostrar. Ao abolir o matema, foi abolido o galileísmo em psicanálise. Daí que o discurso da psicanálise se distingue do discurso científico, enquanto discurso. O seminário XX desencadeia o mecanismo da desconstrução da transmissão da psicanálise apoiada no nó de um lado, no poema do outro; no fio de barbante e na letra; no silêncio e na homofonia do trocadilho, quando Lacan por volta de 1980 resolveu se calar.
Impossível falar, impossível não falar. Daí as estratégias do entre-dois, de semidizer, do não-todo. O aforismo: “a verdade não se diz toda” não significa que verdade não se diga – ela se diz, mas não toda. E sendo dita, mesmo que não toda, não deve ser mostrada.
Há trabalho em análise e dele se ocupa o analisante que a demanda. Esse trabalho é do inconsciente, é trabalho do significante, é o trabalho sem qualidades (vide Marx no livro I do Capital). O sujeito sem qualidades é o sujeito do significante e não o sujeito do pensamento pois que o sujeito se abole como indivíduo imaginário que pensa o que quer que seja e que ‘existe’. O logion ‘isso pensa onde não existo’ é substituído pelo logion ou quase-logion ‘onde isso fala, isso goza e isso nada sabe’. O isso fala e alíngua, que é apenas a forma substantivada do isso fala, absorvem o isso pensa.
No trabalho em análise, há uma prática de reviramento de discursos. O discurso psicanalítico abre em cada discurso uma hiância que o faz revirar em si mesmo. A prática analítica que é topológica faz cortes de discurso que modifiquem a estrutura, desde cortes homofônicos ao corte cirúrgico.
Em final de análise, em um passe après-coup fala-se de uma queda da causa do desejo a partir do qual se produziu a banda möbiana do sujeito. Essa queda demonstra que o sujeito é apenas ex-sistência. Essa ex-sistência é dizer.
* Artigo escrito pela articulação entre “A obra clara” de Jean-Claude Milner e “Psicanálise, uma experiência do inconsciente” de Ivanisa Teitelroit Martins.
(Foto de Capa: Jacques Lacan em um de seus seminários na Universidade de Paris. Crédito: Reprodução).
Ivanisa Teitelroit Martins é psicanalista, cientista social e gestora pública federal. É autora de “Psicanálise: Uma Experiência Do Inconsciente” (Ex Libris, 2023).