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O mar de refugiados que não para de crescer

O mar de refugiados que não para de crescer

Confira resenha publicada, em 2020, em Carta Maior:

Tempelhof, lembranças de uma guerra suja

(publicado em 2020, em Carta Maior)

Com Aeroporto Central (THF – Central airport) o diretor e roteirista Karim Aïnouz estréia no gênero documentário de longa metragem em grande estilo. Autor de filmes de ficção festejados pela crítica daqui e de fora, frequentador assíduo e prêmio em diversos festivais desde 2002, quando lançou Madame Satã em Cannes, o cineasta cearense de 56 anos integra o brilhante grupo de diretores nordestinos que chegou revigorando o cinema nacional nas últimas décadas. Ano passado foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro com A vida invisível.

Agora, ele nos traz a grata surpresa com esse seu fascinante doc, um  autêntico memorial às guerras por procuração com as quais os grandes países assolam e pilham nações orientais ricas em petróleo. O filme já foi exibido na Europa onde Aïnouz vive, na Alemanha, há onze anos, embora com vindas frequentes ao Brasil onde filmou produções de excelência.  Por exemplo, O céu de Suely e Praia do futuro.

O tema é a chegada de refugiados que acorrem pedindo asilo do estado alemão, um dos que mais os recebem no continente,  sobreviventes de um périplo doloroso através de fronteiras fechadas, perseguições policiais e o temido recambiamento ao país de origem onde os espera a prisão e a morte.

O cenário do filme é o aeroporto de Tempelhof, uma paisagem hoje lunar, construído no passado no bairro do mesmo nome, situado ao sul de Berlim e habitado atualmente por uma maioria maciça de refugiados e imigrantes sírios, turcos, afegãos, ucranianos e de outras nacionalidades.

Construído em 1924 pelo regime nazista, a partir do fim da guerra o aeroporto militar de Tempelhof serviu como ponto estratégico para  aeronaves de abastecimento das tropas aliadas. Há cinco anos foi definitivamente desativado.

Hoje em dia, readaptado, funciona como alojamento provisório de chegada para famílias dos fugitivos das guerras sujas. Um local onde depois de um período que varia de meses a alguns poucos anos, homens, mulheres, jovens e crianças recebem o status ou de protegidos ou de refugiados com licença para viver, estudar e trabalhar na Alemanha.

As monumentais pistas de pouso e decolagem ainda estão lá, intactas, e de espaço em espaço ainda se vê um ou outro aparelho Junker enferrujando, defronte de algum hangar. lembranças de uma outra guerra.

As pistas a perder de vista constituem, hoje, o Tempelhof Feld, maior parque público de Berlim, onde famílias tomam sol nos feriados, fazem piqueniques e praticam vôos de parapentes.

No interior do prédio, um exemplar de referência da arquitetura ditatorial nazifascista dos anos 20, vivem os refugiados. É nesse cenário bizarro com o qual Aïnouz abre seu filme, ao som de Wagner (no decorrer do documentário, sua trilha musical sublinha, com discrição, momentos especiais com Schubert e instrumental minimalista á maneira de Phillip Glass.)

Os idosos são assistidos por médicos do estado que vacinam os recém chegados, as crianças  recebem aulas de professores alemães, há orientação jurídica para todos e aulas do idioma alemão.

O jovem sírio Ibrahim, de 18 anos, vindo de aldeia numa das regiões mais conflagradas do país e próxima da fronteira turca é um dos dois fios condutores da austera narrativa. Projeta estudar e trabalhar como mecânico na Alemanha. O segundo é o enfermeiro iraquiano de meia idade que abdicou do desejo de estudar medicina, o que faria na sua terra, e trabalha como intérprete no abrigo de Tempelhof aguardando a sua licença; a nova identidade.

A nadadora olímpica Yusra Mardini, jovem síria de 19 anos, foi nomeada este ano uma das Embaixadoras da Boa Vontade do ACNUR, a Agência da ONU para os Refugiados. Yusra é uma inspiração para os 100 milhões de refugiados existentes no mundo, que assim como ela e a irmã fugiram de seus países, estados destruídos por governos insaciáveis, sempre de olho nas reservas petrolíferas e riquezas daqueles menos ‘desenvolvidos’.

Há seis anos, desde que foi selecionada para os Jogos Olímpicos do Rio 2016, Yusra trabalhou junto ao ACNUR para chamar a atenção internacional continuada para a crise global de refugiados e procurou estimular a formação da primeira equipe olímpica de atletas refugiados. Conseguiu.

Além da sua resistência e coragem, ela desenvolveu o seu talento para nadar profissionalmente com seu pai, um treinador profissional de Damasco, nadador olímpico frustrado, que soube aperfeiçoar a habilidade especial dessa filha.

Agora, a história de Yusra e da sua irmã Sara Mardini é narrada no filme As Nadadoras, atualmente em alta na plataforma Netflix. É baseado no livro com sua autobiografia, Butterfly: From Refugee to Olympian, My Story of Rescue, Hope and Triumph.

O filme é bem realizado, filmagens foram feitas em campos de refugiados gregos e na Europa, e a diretora é uma jovem inglesa de origem egípcia, Sally El Hosaini, que já trabalhou na Anistia Internacional e foi professora para crianças na cidade de Sana, no Iêmen, essa também devastada por guerra econômica e geopolítica. O roteiro, embora de cunho comercial é correto, amarrado em três atos. No primeiro, a vida familiar e o cotidiano das duas irmãs adolescentes sírias de classe média na  Damasco de onze anos atrás que vivia os primórdios da sua malfadada ‘primavera árabe’ e começava a ser destruída por bombardeios diários.

No segundo momento do filme, a fuga das jovens através o Mediterrâneo num barco de borracha superlotado vendido por contrabandistas, em direção às ilhas gregas. De Lesbos, um dos portos repletos de transatlânticos turísticos naquele momento, Yusra e Sara tinham como objetivo atingir a Europa central e depois a Alemanha, destino final das irmãs que quase morreram no percurso. Salvaram-se, por serem corajosas e hábeis nadadoras e salvaram também a vida das dezenas de imigrantes que se amontoavam no barco precário, puxando a embarcação.

No terceiro instante de As nadadoras, a vida da dupla com poucas perspectivas nos alojamentos do ex-aeroporto de Tempelhof, ao sul de Berlim, aguardando concessão de passaporte, autorização para viver e trabalhar no país, uma nova cidadania e, em especial, a garantia de que não seriam repatriadas.

O filme, com elenco de atores libaneses e com as jovens atrizes Nathalie e Manal Issa, irmãs na vida real, tende à superficialidade das histórias de tributo e exaltação convencionais à trajetória do mito do herói; no caso, das heroínas. Mas mais do que a conveniência e a necessidade da divulgação do trabalho do ACNUR, que é um dos produtores do filme, ele reforça, mais uma vez, a crueldade das fronteiras fechadas aos imigrantes com cercas de arame farpado de alguns países da União Européia, o jogo pesado dos contrabandistas que agem impunemente, e aponta, nas entrelinhas, a dificuldade de acesso a uma nova cidadania nos países que recebem e abrigam os deslocados e a discriminação de imigrantes e refugiados. Os processos de solicitação de cidadania podem durar até dezenas de anos.

Vale assistir a As Nadadoras. Ele nos lembrou um documentário, Aeroporto Central*, o belo filme do cearense Karim Aïnouz cujo cenário é a paisagem lunar do ex-aeroporto de Tempelhof, ao sul de Berlim, transformado em abrigo, um limbo habitado na sua maioria maciça por refugiados e imigrantes sírios, turcos, afegãos, ucranianos (mesmo antes da guerra) e de outras nacionalidades.

O filme das meninas nadadoras sírias nos leva a chamar atenção para o número recente divulgado pelo ACNUR nos últimos dias de novembro, dos mais de 22 mil migrantes que chegaram a Nova Iorque e lá vivem, na ex-capital do mundo unipolar, apenas de oito meses para cá.

O alerta é este: caso os solicitantes de asilo continuem chegando à cidade no ritmo atual, a população total inscrita no sistema de hotéis, alguns com até quatro estrelas, designados pela prefeitura de Nova York para abrigá-los, ultrapassará a cifra espantosa de 100 mil pessoas em 2023.

Muitas delas vivendo os dias nas ruas.

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