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O álbum de família de Spielberg

O álbum de família de Spielberg

Nunca fui chegada a álbuns de família. Registros de imagens de personagens próximos e situações pessoais passadas são guardados mas mais ou menos ao acaso. Filmes memoriais muito menos nos atraem. Mas Os Fabelmans (The Fabelmans), o pequeno filme de Steven Spielberg que vem coroar sua impressionante carreira no cinema, acabou nos conquistando.

Nunca fui chegada a álbuns de família. Registros de imagens de personagens próximos e situações pessoais passadas são guardados mas mais ou menos ao acaso. Filmes memoriais muito menos nos atraem. Mas Os Fabelmans (The Fabelmans), o pequeno filme de Steven Spielberg que vem coroar sua impressionante carreira no cinema, acabou nos conquistando.

Apesar de não me entusiasmar na primeira metade, ele cresce no seu segundo ato, amadurece acompanhando a trajetória do personagem central, o menino jovem aspirante a cineasta, e se encerra com duas pequenas sequências irretocáveis e arriscaríamos a dizer, inesquecíveis.

Uma, a do o jovem Sam Fabelman com seu pai (o excelente ator Paulo Dano), abrindo a correspondência que chegou naquele dia trazendo boas e más notícias; e a última sequência, de menos de cinco minutos, o encontro (que se deu na realidade) do rapazinho com nada mais nada menos que John Ford, este interpretado com gosto pelo diretor David Lynch o qual evidentemente se divertiu com seu próprio trabalho de interpretação do célebre colega.

Na trama de Os Fabelmans, o jovem Sam (Gabriel LaBelle) é o alter ego de  Spielberg na infância e primeira juventude. Vai ao cinema pela primeira vez na vida com seus pais, em 1952, e assiste a O maior espetáculo da terra, de Cecil B. DeMille. Depois da fantástica descoberta para ele do cinema e de como se faz filmes, Sam passa a viver deslumbrado com imagens em movimento e, com uma câmera que ganhou de presente, começa a sua carreira com filmetes domésticos.

Um dos mais populares, senão o mais popular dos cineastas e autor do maior número de produções listadas na seleção dos 100 Melhores Filmes Americanos de Todos os Tempos do American Film Institute, Spielberg está completando agora 50 anos de carreira.

Cineasta, produtor cinematográfico, roteirista e empresário, aos 76 anos ele viu seus filmes faturarem mais de dez bilhões de dólares em cinemas ao redor do mundo. Spielberg recebeu 12 indicações ao Oscar em seis décadas diferentes e ganhou a estatueta duas vezes. Com a Lista de Schindler, em 1994 e com O Resgate do Soldado Ryan em 99. O sucesso estrondoso começou com o filme ícone Tubarões, de 1975, aos 28 anos de idade.

Nascido em plena Guerra Fria, em uma cidadezinha do Ohio, na deep América conservadora onde viveu com a família judia praticante, ele mudou-se para a cosmopolita e esnobe Califórnia em função do trabalho do pai, um excelente operador e funcionário da indústria de tecnologia então nos primórdios.

Na Califórnia, estudou e lá experimentou, na escola, o racismo, o anti-semitismo dos colegas da alta classe média californiana. Ao 16 anos, a mãe (Michelle Adams, cativante na exuberância do papel de artista frustrada) se divorcia do seu pai e volta para o Ohio com as duas irmãs de Steven ainda crianças. Foi viver com o melhor amigo do marido, Bernie, pessoa que existiu na realidade e por quem ela sempre tivera sido apaixonada.

Esse episódio familiar, discreto até agora, se tornou público (a mãe morreu há cinco anos) nesse filme íntimo  que segundo a formidável e contraditória campanha  de marqueting, ”é vagamente inspirado no diretor”. O menino Sam do filme seria apenas um alter ego de Spielberg no roteiro escrito por ele e pelo grande amigo, o dramaturgo Tony Kushner, Premio Pullitzer de teatro e autor da peça Angels in America.

Em Os Fabelmans o personagem descobre o caso da mãe com o melhor amigo do pai uma noite, enquanto edita, no seu quarto, o vídeo caseiro com uma viagem de fim de semana da família. Certa imagem congela na sua moviola de amador e ele percebe claramente, em um take frisado, a paixão que unia os dois.  É um altos momentos da história, com Sam/Spielberg aos 16 anos.

Outros toques de excelência no filme ocorrem quando num diálogo é comentado que ”o poder dos filmes nos ajuda a ver a verdade uns sobre os outros; e sobre nós mesmos”. Grande verdade.

O outro é quando o jovem recebe, no tal encontro relâmpago no mitológico escritório de John Ford, um curioso conselho do mestre sobre enquadramento de imagens: ”A linha do horizonte deve ficar sempre acima ou abaixo da cena”.

Para além do caudaloso talento de Steven Spielberg em controlar o timming do que ocorre na tela para emoldurar as ações humanas, e administrar os espaços, as emoções, os ritmos, os momentos exatos de suspense, a segurança matemática dos cortes, o manejo do drama (em A Lista de Schindler por exemplo) entremeado com o monumental entretenimento que ofereceu com seus alienígenas, em 1982 (Et/O Extra Terrestre) nós encontramos a exegese, nesse irresistível álbum de família, das origens da trajetória do que é na verdade um rigoroso profissional; e não de quem encontra um passatempo e brinca com cinema, como seu pai chegou a estimulá-lo e o que Spielberg poderia ter sido.

Filho de uma mulher frustrada, uma mãe amorosa que respirava arte vinte e quatro horas por dia, música, dança, interpretação dramática, num movimento que para ela era incontrolável, e filho de um pai igualmente afetuoso, sereno, introspectivo e ginasta da racionalidade das máquinas, ambos acompanharam o desenvolvimento do menino com alegria.

Sam só poderia dar no que deu. Um dos grandes da sétima arte que certamente será definitivamente celebrado na festa do próxima entrega das estatuetas douradas, dia 12 de março deste ano com o Melhor Filme, Melhor Direção e especialmente com Melhor Roteiro.

Enquanto isso ele conclui seu próximo projeto: uma série sobre Napoleão Bonaparte.

Confira o trailer:

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