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Raízes da escravidão

Raízes da escravidão

Propriedade é um filme que chega com a impetuosa afluência das produções realizadas no Brasil depois do longo jejum cultural dos últimos quatro e sombrios anos neste país. Agora, concluídos com o suporte de entidades estatais que hibernavam e voltaram à atividade, de leis que funcionam outra vez e de investidores particulares de olho no filão desses filmes de ficção e documentos das nossas realidades, eles chegam aos cinemas e às plataformas, aos festivais daqui e de fora, estes interessados no surto de fertilidade da indústria do cinema brasileiro.

Realizado com recursos do Funcultura Audiovisual e do Edital de Longas de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura e produzido por Símio Filmes e Vilarejo Filmes, a exibição de Propriedade nas salas de cinemas é obra do projeto Sessão Vitrine Petrobras.

O filme do pernambucano Daniel Bandeira foi rodado na Fazenda Morim, de São José da Coroa Grande, em 2018, e chega após o silêncio imposto pela pandemia e pela ignorância do tosco governo neofascista abortado nas urnas, ano passado. Propriedade é o seu segundo longa metragem (o primeiro é Amigos de Risco) e é um dos cartazes interessantes nas telonas, esta semana. Narra uma história que à semelhança de outras delas, registradas no país atual, mesclam suspense e terror no cenário de luta de classes conhecido de muitos, nas plateias. Além de diretor, Bandeira também é o seu roteirista do filme.

Para se ter ideia do interesse que Propriedade vem suscitando, durante o circuito internacional de 2023 o filme transitou pelo Festival de Berlim, pelo Edimburg International Film Fest, o MotelX, de Lisboa, o espanhol Sitges, os americanos Brooklyn Horror Fest e Fantastic Fest (foi designado Melhor Filme em ambos), o holandês Leiden International Film Festival, e amanhã, dia 20 de dezembro, será exibido no MoMA, o Museu de Arte de Nova Iorque, em uma sessão especial do respeitado programa The Contenders no qual são programadas as obras mais influentes e inovadoras de cada ano. No Brasil, fez sucesso de público e de crítica quando esteve nos festivais de Tiradentes, São Paulo e Aruanda.

A intolerância e a incomunicabilidade entre as classes no Brasil é o tema do diretor que desenvolveu essa espécie de parábola sobre o que pode suceder quando se rompe o fino fio que ainda sustenta, no Brasil, o equilíbrio do penoso convívio entre as classes dos trabalhadores, dos pobres e dos vulneráveis sem perspectivas e a dos abastados, dos ricos e senhores do futuro e de todos os poderes.

Segundo os realizadores do filme, trata-se de um thriller que apresenta o medo como o combustível para a violência. O filme é estrelado pela atriz Malu Galli que faz uma estilista traumatizada por um recente sequestro relâmpago sofrido há pouco tempo e sai da cidade com o marido para buscar refúgio e relaxamento na sua fazenda. Ela é uma forte imagem da depressão.

Mas a mulher acaba se vendo no centro de um movimento violento, de revolta dos trabalhadores da sua propriedade quando o marido manda o capataz anunciar aos trabalhadores a venda da fazenda para um grupo que vai transformá-la em hotel. Os trabalhadores locais indagam pelos seus direitos (?) trabalhistas, querem saber qual será a remuneração pela sua atividade de vida inteira nas terras da fazenda e o reconhecimento legal de propriedade das casas nas quais habitam com as famílias durante toda sua vida.

Para enfrentar o levante, a mulher foge e se abriga isolada e fechada dentro do carro blindado do casal, trancada pela barreira impenetrável de vidro das janelas para se proteger do ataque dos trabalhadores. Ela é o grande símbolo da classe que se vê numa luta de vida ou morte diante dos que foram explorados pelo seu grupo durante toda a existência e que em determinado momento cobram os seus direitos.

Sobre o recado do tema do plot do seu filme, diz Daniel Bandeira: “Só quando rompemos essa blindagem, ou quando abrimos a porta, ou quando descemos o vidro para poder falar com o outro, nós temos condição de iniciar um diálogo, de estabelecer um clima de resolução de diferenças, resolução de problemas. Até lá, a incomunicabilidade é o motor da nossa tragédia”.

E ele sublinha: “Enquanto houver uma camada impenetrável de vidro, os dois universos estarão prestes a colidir. Eu acho que é nisso que reside a grande tragédia, não só da história do filme, mas da história dos nossos tempos”.

Propriedade significa, e é um importante pró-memória do fato que a violência urbana no Brasil tem raízes que retrocedem no tempo. “No campo e no tempo, porque são questões históricas muito antigas”. (…) “Mas acabamos vendo somente o efeito imediato dessa opressão na cidade, muitas vezes não nos dando conta de que a origem disso está no campo, está na história”, alerta Daniel Bandeira.

Origem que se encontra na escravidão, no regime escravagista (mesmo disfarçado) operado nas regiões rurais do país pelos senhores que, ainda hoje, são os ‘possuidores‘, os proprietários.

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