O trauma político que permanece
As curadoras da Flip 2023, Fernanda Bastos e Milena Britto, relembram a síntese do pensamento de Pagu, a personagem e tema da festa literária atual que há vinte e um anos atrai uma multidão de pessoas interessadas em literatura à cidadezinha no litoral de São Paulo.
“Esse crime, o crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre” era uma das ideias centrais de Pagu transformada em dístico dessa Flip que se encerra domingo. Desta vez, uma festa da literatura produzida por mulheres e com a novidade de abrigar a Flipei, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes que está se desenrolando paralelamente à feira/festa de Paraty.
Nessa seleção de trabalhos independentes, nos chamou a atenção o título de um livro, Chumbo. Não “anos de chumbo”, mas apenas chumbo, com a força do metal que remete a peso, a pesadelo, ao fardo que a memória e as lembranças insistem em carregar consigo através do tempo. No caso, a memória política. O volume é da Editora Quelônio e a autoria da antropóloga Virgínia Ferreira, do Ministério da Cultura, em Brasília, onde trabalha na Secretaria de Formação, Livro e Leitura.
Chumbo é o primeiro romance de Virgínia. “Cheguei a pensar em uma pesquisa acadêmica, mas foi a literatura que me permitiu falar da dor e do não dito nesse processo de violência. O estado de espírito e de alma, que coloca a dor para fora, que procura nomear, colocar em palavras, construir o que ainda é difuso – isso somente pode acontecer nesse encontro com a arte”.
O sucesso atual do livro, à venda nas livrarias, e que será lançado no Rio de Janeiro, no próximo dia 4 de dezembro, na Leonardo da Vinci, já resultou na elaboração de um novo romance de Virgínia, ainda no tema da ditadura brasileira que, segundo ela, “merece e pode ser explorado de outras formas. É um projeto coletivo e literário que venho elaborando com um colega também escritor e filho de ex-preso político”.
O tema central de Chumbo é o trauma que permanece e o modo como ele perpassa as famílias atingidas pelo período da ditadura civil-militar no país. “Escrevi o livro muito sozinha e numa busca subjetiva intensa. De um processo especialmente íntimo, eu não esperava uma tão boa recepção. E também não esperava que o livro me levasse ao coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça e ao grupo do Memória, Verdade, Justiça e Reparação. Movimentos bonitos, políticos, literários, coletivos e fortes”.
Um dos momentos que detonou na autora o impulso de escrever Chumbo, diz ela, “ocorreu durante a fala dos parlamentares na votação do impeachment da Dilma Rousseff quando o Ustra foi ovacionado, o torturador dela quando esteve presa pela ditadura militar. Foi muito violento. Experimentei a sensação de que precisávamos falar mais sobre isso como sociedade. Algo ficou entalado na minha garganta. Depois, vieram as eleições e outros episódios bastante difíceis. Naquele momento, comecei a escrever”.
Na contracapa do volume, um pequeno apanhado sobre o estado de espírito de Ana, a protagonista do livro. “Ana se movimenta contra a demora do tempo. Vive um período de investigação interior, sonhando, amando, relembrando momentos intensos”.
Chumbo é uma ficção, mas vem baseado na história do pai da autora, José Antonio da Silva, que vive em Ribeirão Preto. O trabalho é dedicado a ele. A narrativa de Virgínia se desenvolve com reminiscências de uma intensa ligação que a jovem Ana manteve com o tio, Paulo, “aquele que foi preso e torturado”.
Ana “aos poucos percebe que a história é também o presente e que algo a persegue”. No final do capítulo Dolorimento, ela observa sobre o tio Paulo:
“Todas as manhãs, via na rua de sua casa um Fusca estacionado e, quando ele virava a esquina, o carro dava a partida e saía atrás. Todo cuidado é pouco. Com a redemocratização, teve acesso a um documento do SNI. Constatou que o último registro de suas atividades foi quando esteve em uma manifestação do movimento Diretas Já. Treze anos após sua saída da prisão. Tenho foto desse documento.
Nunca se sabe, pode ser mania de perseguição,
E pode ser perseguição de fato”.
O escritor e professor mineiro Jacques Fux é quem detalha e invoca, na sua apresentação, na orelha do volume de Virgínia, a “questão do trauma”: “Em quanto tempo se cria um trauma?”, ele indaga. “Por onde o trauma caminha? Onde termina uma experiência traumática?”.
“Há que enfrentar de peito aberto”, diz Fux, “esses eventos-limites, essas ‘histórias‘, por exemplo, dos milhares de assassinatos e torturas perpetrados pela Ditadura Militar no Brasil”. É “esse passado, ainda presente, que luta para ser revelado e resgatado. (…) Livro que merece ser lido, relido e estudado”, escreve Fux. “É a escrita da dor, é escrita dolorosa, é a revelação da dor da vida, da dor do texto”. E, mais que tudo: “É a dor da memória e da palavra”.
Jornalista.