‘Nostalgia’ ensaia a volta do grande cinema italiano
De volta à cidade natal, o napolitano Felice vagueia entre as pedras das casas, das igrejas e dos célebres mercados de rua do bairro de Sanitá Rione, que agora lhe parece terra estrangeira
Um dos maiores tesouros culturais dos italianos, Nápoles é santuário de cineastas e cenário preferido dos atores e de todos os que veneram uma das cidades mais antigas e mais fascinantes do país. Grande reserva turística da Europa, se por um lado Nápoles rende dividendos inestimáveis ao estado, essa cidade iluminada pela bela luz do Mediterrâneo é também um território refém da violência da camorra.
O filme Nostalgia traz esses dois componentes: a beleza das ruelas do bairro de Rione Sanitá, nicho do centro da Nápoles antiga, (que sofre um processo agressivo de gentrificação, como mostra o filme) e a brutalidade dos criminosos membros da camorra que ainda hoje atuam, soltos, livres e leves, pelas ruas da cidade.
Produzido em 2022, em cartaz esta semana no circuito de cinemas, o filme do napolitano Mario Martone, de 63 anos e mais de 30 de trabalho, é uma das produções atuais que ensaia reencontrar a qualidade do majestoso cinema italiano dos anos 60/70. Ele e seus companheiros de geração, produtores, diretores, roteiristas, fotógrafos, atores e atrizes, vêm procurando retomar a tradição de uma idade de ouro cinematográfica sufocada pelo governo Berlusconi e pelos seus sucedâneos chissenefregam com manifestações artísticas, e em especial com a arte cinematográfica.
Nesse sentido, Nostalgia é um símbolo. Felice, o protagonista, depois de quarenta anos vivendo no Egito, retorna a Nápoles para reencontrar a mãe idosa que havia abandonado quando ainda era adolescente. De volta à cidade natal, ele vagueia entre as pedras das casas, das igrejas e dos célebres mercados de rua do bairro de Sanitá Rione, que agora lhe parece terra estrangeira, com uma língua (dialeto) que, às vezes, até custa entender; mas que é o seu próprio idioma.
Felice é tomado por um estranho fascínio e pelas memórias da sua outra vida de menino em companhia de Oreste, o melhor e muito especial amigo. Nostálgico, pensa em retornar definitivamente a Nápoles e ali usufruir a vida presente de adulto, de homem de negócios rico e bem sucedido, em companhia da sua mulher que ficou no Egito. Procura também, é claro, rever Oreste.
Por outro lado, aos poucos, às vezes compreende que Nápoles representa para ele uma vida perdida. E que deve voltar para o Cairo. Como ocorre com alguém devastado pela força invencível da nostalgia, Felice titubeia acreditando que será mais feliz como filho pródigo na sua casa natural. Assim, os tempos do presente, do passado e do futuro vão se amalgamando dentro dele enquanto perambula pelas ruelas de Sanitá. Pensa: “Só a cidade mudou ou fui eu quem mudou?”.
Exibido no Festival de Cannes, o filme foi indicado também para o importante premio David di Donatello e o diretor fez sucesso em Veneza há dois anos com Qui Rido Io (O rei do Riso). O protagonista, aquele que observa o passado com o olhar do presente, enquanto perambula pelas ruelas, é interpretado pelo ator Pierfrancesco Favino. Ele reedita com extrema delicadeza o personagem central introspectivo, concentrado e recolhido do livro de Ermanno Rea, inspiração para o roteiro do filme. “Favino é simpático de uma forma forte e silenciosa”, escreve Guy Lodge, na Variety.
Como bom romano, Favino comenta em entrevistas que o seu desafio para fazer o papel foi o de aprimorar o dialeto napolitano. “Na Itália, há um enorme respeito pela língua napolitana. Muitos dos nossos dramaturgos vêm de Nápoles”. Ele também aprendeu um pouco de árabe com o qual chega a sustentar alguns diálogos.
O diretor Martone, que foi amigo de Abbas Kiarostami e é influenciado pelo cinema iraniano, acha que, se fosse vivo, o seu mestre gostaria de Nostalgia. “E eu gosto do cinema dele porque como vários outros filmes de diretores iranianos são rodados na rua onde se vê pessoas reais; e eles têm uma força incomum”. Nostalgia do neorrealismo?
Outro aspecto simbólico do filme foi fazê-lo em um bairro que é um autêntico labirinto, “como um tabuleiro de xadrez” onde o jogo é decidido. Martone faz poesia quando diz: “Com a câmara nos ombros, começamos a caminhar pelas ruas, na nossa interpretação do cinema da realidade”.
“E filmamos a última cena”, ele diz, “nos perguntando qual seria o seu significado, e não conseguimos encontrá-lo. Talvez não haja sentido. Existe o labirinto e existe a nostalgia, que é o destino de muitos, e talvez de todos nós”.
Essa nostalgia de Martone – e a nossa, própria – traz uma última cena, inesperada e desconcertante, desse excelente filme.
Jornalista.