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Novembro da Consciência Negra

Novembro da Consciência Negra

Tempo de lembrar o significado da expressão ”consciência negra”, de reconhecer e valorizar a presença e atuação dos negros, a cultura negra brasileira e as suas contribuições para a constituição de nossa sociedade.

Tempo de lembrar o significado da expressão ”consciência negra”, de reconhecer e valorizar a presença e atuação dos negros, a cultura negra brasileira e as suas contribuições para a constituição de nossa sociedade. No Brasil, na data que celebra essa luta de afirmação, o próximo dia 20, presta-se homenagem às culturas dos povos negros e deve ser reforçado o papel fundamental da sociedade refletindo, agindo e contribuindo para combater o racismo estrutural neste país que tem 57 por cento da população registrada pelo IBGE como negra e parda. 

O dia 20 relembra a data da morte de Zumbi dos Palmares, líder de um dos maiores quilombos do país,  o Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga, capitania de Pernambuco. Sua morte, em 1695, ocorreu numa emboscada e desde então Zumbi é um dos maiores símbolos de luta e resistência contra a escravidão.

Este ano, os dados trazidos pelo IBGE sobre a situação da população negra no Brasil não são animadores. Mais de 50 por cento da população brasileira é composta de negros e negras empobrecidos. Há que refletir e agir para torná-los mais positivos de modo a diminuir a desigualdade gritante entre os cidadãos da população negra e os indivíduos de pele branca.

Os negros brasileiros são duas vezes mais pobres que os brancos. Enfrentam mais violência, mais dificuldade econômica, maior retração do mercado de trabalho e “as desigualdades sociais por cor ou por raça no Brasil seguem evidentes”, registra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em pesquisa divulgada semana passada.

É um momento para reflexão justamente neste novembro, o mês da consciência negra que culmina com o próximo domingo, Dia Nacional da Consciência Negra.

Além de desemprego e informalidade sempre maiores entre pretos e pardos – esta é a classificação usada pelo instituto –, eles convivem com violência maior, com mais insegurança e com muito mais pobreza. Em 2021, segundo o Banco Mundial, a proporção dessa pobreza no país era de 18,6% entre os brancos, e quase o dobro entre negros (34,5%) e pardos (38,4%).

Outros índices apurados pelo IBGE são de uma injustiça escandalosa. É o caso da taxa de homicídios entre negros e pardos, três vezes maior em relação aos brancos.

A informalidade no mercado de trabalho também atinge mais os pretos e os pardos. No ano passado era de 40,1%. Entre os brancos  caía para 32,7%, aumentava para 43,4% no caso dos pretos e mais ainda entre os pardos: 47%. No  mundo do trabalho, a taxa de subutilização, que considera pessoas que gostariam de trabalhar mais, foi de 22,5% entre brancos, 32% entre pretos e 33,4% entre pardos.

No livro muito especial lançado mês passado, Mães em Luta, e no filme documentário Fé e Fúria, este agora disponível em plataformas de streaming, tem-se a exposição do duro cotidiano da população negra e da sua luta sem tréguas pela sobrevivência e por uma vida digna. Em ambos há referências culturais valiosas para reflexão, mas – repetimos – sobretudo são ferramentas de estímulo à ação.

A consciência no livro Mães em Luta

”Parem de nos matar” é o brado que une sete mulheres na busca inconformada por justiça e cujos depoimentos constam do volume Mães em Luta,  primorosa edição da Fábrica de Cânones, um Livro-Luta por Justiça e Memória.

Na orelha do volume (143 páginas) que pode ser adquirido pelo link da editora contato@fabricadecanones.com.br, e é desenhado com especial cuidado gráfico, o ex – Ministro de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro escreve: “Este livro, Mães em Luta, reúne diversos depoimentos de mães que perderam seus filhos e deve servir para romper o silêncio e a inação dos governos diante desses crimes.

São testemunhos candentes, plenos de lembrança das vidas de seus filhos, que todos os defensores da vida e da dignidade da pessoa humana nesse país têm a obrigação de ler e divulgar.”

As autoras dos comoventes depoimentos nos quais relatam as agressões de morte sofridas pelos seus filhos (uma delas, por um sobrinho), a dor de perdê-los, a impunidade ou o descaso do estado em justiçar os assassinos e até as ameaças que sofrem quando prosseguem em processos judiciais.

Gilvania Gonçalves, Maria Medina Costa Ribeiro, Mírian Damasceno da Silva, Rossana Rodrigues, Sidneia Santos Souza, Solange de Oliveira Antonio e Tatiana Lima Silva, todas elas são do coletivo paulistano  Mães em Luto da Zona Leste.

“Hoje,” ressalta Paulo Sérgio Pinheiro,”os direitos humanos são ameaçados pelo governo federal, que trata ativistas e negros como inimigos”. Uma vergonhosa situação que, esperamos, deve começar a mudar a partir do ano que vem.

A luta no documentário Fé e Fúria

O documentário do diretor mineiro Marcos Pimentel é a investigação sobre como alguns dos grupos de evangélicos perseguem, quase sempre com violência, as religiões de matriz africana. O filme, de forte impacto, foi realizado em comunidades, favelas, periferias e subúrbios do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte entre 2016 e 2018.

Fé e Fúria mostra o misto de religião e poder, combinação estimulada pela tragédia política que o país vivenciou nos últimos quatro anos; traz a origem de conflitos entre moradores e vizinhos que até então conviviam em paz, e aponta para a ameaça da formação de um país teocrático com potente discurso de oposição às diferenças.

Pimentel apresenta um quebra-cabeça embebido em racismo estrutural, o violento discurso de fascismo religioso nas periferias das grandes cidades ao som do gospel, de mega espetáculos musicais, da apropriação do funk, do pagode e do samba por denominações evangélicas, a intolerância aos terreiros de candomblé e a depredação de tradicionais casas de macumba. Trinta ataques com total destruição dos imóveis foram executados no espaço de apenas um ano em uma das comunidades visitadas pelo filme.

O doc narra um Brasil em início de processo de estagnação e até de retrocesso social, político e econômico na época em que evangélicos começavam a ascender ao poder político que culminou na eleição de J. Bolsonaro.

“Mesmo sem termos filmado no período eleitoral, o filme registra episódios de intolerância, massacre de minorias, reações obscuras entre religião e poder, racismo, fascismo, Bíblia e Deus utilizados para justificar atos injustificáveis, poder armado, tráfico, milícias… é como se estivesse tudo ali, pairando sobre a sociedade brasileira,” comentou Pimentel em entrevista sobre o seu importante filme que está estreando agora em várias plataformas de streaming*.

“Eu estava diante de gente que precisava gritar para o mundo todas as opressões que vinha sofrendo”, diz Pimentel, ”e senti que  precisava abrir espaço para que aquelas pessoas fizessem isso. É bem difícil filmar casos de intolerância no momento em que ocorrem. O intolerante não permite ser filmado. Então, o que temos aqui, no filme, é quem sofre a intolerância relatando o que experimentou.”

O filme se inicia com o testemunho do caso da menina Kayllane, que levou uma pedrada na cabeça quando passava pela rua por estar vestida com roupas brancas de candomblé. Episódio divulgado amplamente pela mídia na ocasião, foi um dos muitos atentados a pessoas que sofreram agressões físicas e que nem chegaram a ser notícia.

Fé e Fúria é um doc respeitoso ao apresentar personagens com discursos e crenças religiosas opostas das religiões de matriz africana comentando sua visão a respeito dos acontecimentos. ”Mas o filme toma partido,” diz o diretor, ”e condena a intolerância religiosa. Para ouvi-los era preciso não apenas deixar claro o posicionamento do documentário, mas também ouvir as opiniões dessas pessoas que sentiram que podiam se abrir e toparam falar”.

A ação dos “donos dos morros” e a aliança explosiva do tráfico e dos traficantes com os evangélicos são abordadas.  ”Traficantes, não”, corrige uma mãe de santo entrevistada. ”Esses vivem em Brasília e são políticos; outros, vivem e moram nos apartamentos da beira do mar, no Leblon. Os que vivem aqui são pequenos vendedores de drogas no varejo”.

As relações do poder político com o poder armado, de outras religiões com o diabo (da ”religião de preto com os demônios”), e o processo de transferência de dogmas católicos para grafites replicando versículos da bíblia pintados em muros de residências de comunidades são outros subtemas tratados nas corajosas entrevistas desse filme.

É necessário assistir à Fé e Fúria para continuar tentando entender melhor a complexidade do Brasil profundo, mas urbano, e a dimensão mal calculada, ignorada pelos ricos e menosprezada pelas classes médias sobre a gravidade dos profundos preconceitos de raça, cor, política e religião que permeiam esse país dividido.

* Disponível na Claro TV+, Oi Play e Vivo Play.

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