A transgressão de Carmen no Chile de Pinochet
A mídia reconheceu ‘1976’ como um ‘noir’ histórico que analisa a sociedade paternalista e patriarcal durante o regime de Pinochet, através da perspectiva de uma mulher burguesa corajosa que se posiciona
A produção chilena intitulada 1976, de uma hora e meia,é uma pequena joia perdida entre tantas produções medíocres, comerciais, ou “populares” como preferem alguns, nos catálogos de filmes em cartaz nas plataformas de streaming. Com estreia no ano passado e dirigido por Manuela Martelli, de 40 anos, 1976 é ficção baseada em fatos reais que de algum modo pode ressoar familiar a algumas mulheres das classes médias que trabalharam anonimamente e sob risco de vida contra o período da ditadura civil-militar no Brasil, nos anos 60/70.
O roteiro de Alejandra Moffat, de 41 anos, e da própria Manuela Martelli é um recorte com estrutura semelhante a de um conto baseado na história da avó da diretora, falecida em 1976, um dos anos mais sangrentos vividos pelos chilenos sob a ditadura de Augusto Pinochet. Foi apresentado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cinema de Cannes do ano passado e indicado ao prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano de 2022.
O relato ambientado no Chile narra a história de Carmen, de 50 e poucos anos, mulher da alta classe média de Santiago que atende ao pedido do padre Sanchez, seu amigo, para ajudá-lo a salvar um jovem militante guerrilheiro urbano, ferido e perseguido pela polícia do ditador. Foi acolhido e escondido em um anexo discreto da igreja paroquial do vilarejo no litoral onde Carmen mantém sua confortável casa onde passa férias com a família, marido, filha, genro e netos. Ela começa então a tratar, às escondidas, dos sérios ferimentos do rapaz, Elias, com a experiência que adquiriu no trabalho que fizera, no passado, como voluntária da Cruz Vermelha.
A protagonista é a atriz espanhola Aline Küppenheim, que discretamente sustenta o filme de modo surpreendente encarnando a fragilidade, a vulnerabilidade, mas também a experiência, a personalidade solidária, original e afirmativa na medida do que é possível em uma mulher ingressando na meia idade, naquela época, produto acabado da burguesia, mulher rica e casada com um médico famoso, diretor de grande hospital de Santiago.
A trilha sonora criada por Mariá Portugal, de 38 anos, é justa e acentua o perigo que era viver, naquele momento, contra o sinistro governo dos generais. No Chile, no Brasil e em qualquer outra ditadura. Mariá é baterista, cantora e compositora paulista e é econômica ao comentar, com acordes precisos, a situação de suspense e o clima de filme noir que se instala quando a vida de Carmen racha na duplicidade e passa a ser arriscada.
Enquanto ela termina a reforma da sua casa de veraneio e prepara a grande festa de aniversário de um neto, parte do seu tempo é dedicado a curar as feridas de Elias e salvar a vida dele.
Com poucos diálogos, poucas palavras e em flashes exatos, Martelli cria com perfeição o clima das reuniões familiares, as conversas com amigos, e coloca a sua situação de Carmen, semelhante à das mulheres com origem na geração dos anos 50 que então não conseguiam ainda se afirmar e se emancipar. Ela transcreve os diálogos com homens machistas, ou inoportunos (inclusive com seu marido famoso), membros da direita cheirosa que apoiou com convicção as ditaduras de sangue. Lá, a do (des)governo Pinochet. Aqui, a dos generais de plantão.
O filme pinça com mestria algumas das conhecidas opiniões classistas e patronais que costumam permear essas conversas nas rodas dos burgueses de todas as partes do mundo: “Os chilenos são preguiçosos e fazem corpo mole para tudo”. Ou então: “O Chile é um país que precisa de um líder forte (como Pinochet)”.
Aclamado pela crítica, o filme de Martelli foi premiado nos festivais internacionais de cinema de Atenas, Tóquio, Londres, Jerusalém e, no Chile, em Valdívia, e foi reconhecido pela mídia que viu nele um noir histórico ao “radiografar a sociedade paternalista e patriarcal de Pinochet através dos olhos de uma mulher burguesa que ousa tomar uma posição”.
O competente crítico cinematográfico britânico, do The Guardian, jornalista Peter Bradshaw, escreveu: “1976 é feito com uma segurança emocionante, e a tensão e a crise espiritual de Carmen são transmitidas de forma soberba, com uma trilha sonora enervante de Mariá Portugal. Grande exemplo do noir antifascista chileno”.
Quanto ao personagem da mulher que transgride, com certeza o espectador(a) perceberá, vendo o filme, imperdível, que não foi por mero acaso a protagonista ser batizada pelas suas jovens autoras com o nome de Carmen, a heroína transgressora da ópera de Bizet.
*1976 está disponível na Netflix.
Jornalista.